Manifesto pela Família

64Apesar de ter dificuldade com a manutenção e uso dos termos, ainda aceito quem me identifica como “de esquerda” – talvez eu mesmo ainda me aceite dentro destas posições que já não tem sentido ou conteúdo claro (afinal, que é ser de esquerda, hoje? e de direita?). Parece que só se determina um grupo numa posição ou outra quando temos que enfrentar um problema: a favor ou contra determinada coisa, defensor ou acusador de outra. Com total generalidade e pouco cuidado, jogamos pra lá ou pra cá quem quisermos e como quisermos. De todo modo, dentro dessa bagunça, alguma afeição ainda tenho por ser jogado para “esquerda”

Assim, acatei e acolhi uma crítica que tem me feito pensar muito: um sociólogo que pesquisa comunidades evangélicas no Rio de Janeiro disse que as igrejas são presa fácil para discursos conservadores porque os grupos “de esquerda” não conseguem falar ou tratar do tema “família”. Verdade. Mais que verdade. Família, laços próximos, biológico-sociais-culturais que constituem aquele pequetito núcleo de pessoas que normalmente habitam debaixo do mesmo teto, não é braço nem tema de nossos discursos. Pelo contrário (e já me colocando diretamente como “de esquerda”) antes mesmo que esse assunto chegue à mesa já temos como pressuposto e defesa a crítica à família pequeno-burguesa (tradicional) – crítica que compartilho, aceito e também defendo. Todavia, se não fizermos a crítica material da família, ou seja, se apenas aceitamos um modelo abstrato e teórico que chegue de cima (ou de fora) e não que nasce desde as bases e conteúdos culturais, reais, cotidianos, nossos, incorremos nos erros que Marx tanto apontou dos hegelianos: não são suficientemente críticos, pois faltam com a crítica da crítica, com a crítica material.

Vou enquadrar genericamente aqui como “esquerda” quem de alguma maneira acate ou aceite críticas marxistas – seja à filosofia, às estruturas sociais, econômicas ou ainda políticas. Assim, coloco em questão um grupo mais específico; pois para lutar por justiça social, igualdade, dignidade, defender a vida, o pobre, a viúva e toda frente de defesa de minorias, não precisa ser “de esquerda” – basta ser humano preocupado com a vida humana. É uma discussão a respeito dos fundamentos, do discurso, das práticas de partidos, intelectuais e organizações “de esquerda” a respeito da família. Por isso, provocativamente, é um Manifesto pela Família.

É curioso porque o primeiro texto que Marx e Engels escrevem juntos é A Sagrada Família, em 1844 – antes do famoso Manifesto comunista. N’A Sagrada Família, está colocado o modo como superam a oposição entre “massa” e “espírito”. Na interpretação que fazem dos hegelianos, Marx e Engels percebem que havia uma distância entre o “espírito” (para Bauer, a Crítica) e as “massas”, que eram apenas os indivíduos humanos que carregavam materialmente a história (postos abaixo ou inferiores à racionalidade, àquilo que é mais sublime e importante para o desenvolvimento da humanidade). As “massas” são inferiores. São superadas e superáveis, ou seja, progridem graças ao espírito, capaz de iluminar e conduzir toda a brutalidade do “povão”. N’A Sagrada Família, Marx denuncia essa postura e abre o campo para a ideia de “auto-libertação do proletariado”. Na relação dialética de superação das oposições, não será um lado o beneficiário ou o superior ao outro, mas o humano que se desenvolve materialmente nas relações, ações, interações e reações frente ao mundo. Aproxima-se dos operários franceses e, diferente da ideia de que partidos, intelectuais e grupos especiais com sua “crítica” vinda do espírito guiariam as “massas”, percebe que eles como “povão”:

[…] não creem que possam eliminar, mediante ‘pensamento puro’, os seus senhores industriais […] Eles sentem de modo bem doloroso a diferença entre ser e pensar, entre consciência e vida. Eles sabem que propriedade, capital, dinheiro, salário e coisas do tipo não são, de nenhuma maneira, quimeras ideais de seu cérebro, mas criações deveras práticas e objetivas de sua própria auto-alienação […eles sabem que…] Se o homem é formado pelas circunstâncias, será necessário formar as circunstâncias humanamente.

Disso, uma postura explícita e uma implícita importantes nessa leitura de Marx/Engels: 1. são as massas (os operários, no caso) que vão se libertar de si e por si enfrentando a realidade posta; 2. o discurso teórico é produzido a partir da circunstância real e daquilo que as massas (no caso, os operários) têm consigo e trazem para as relações, ações, interações e reações frente ao mundo, aos problemas que devem enfrentar.  Continuar lendo

Meditações e raízes: São Bruno de Colónia

10-06-bruno

São Bruno rejeitando o bispado

Não nego que vivo num período de crises. Não que isso seja algo ruim ou uma etapa de vida que queira superar. Talvez não mais. Antes ficaria preocupado em busca de uma estabilidade ou calmaria, um maior controle sobre as situações. Hoje, parece que a ideia de controle é uma sensação ou ilusão passageira útil para enfrentarmos alguns problemas e não nos deixar desanimar. Mas até mesmo na monografia que escrevi para graduar em filosofia já indicava que a “estabilidade” é um estado útil, pragmático, mas irreal ou não factível com o que vivemos todo santo dia. A verdade é que não temos controle e nem deveríamos querer ter. Saber seu lugar e o seu tamanho frente às estrelas quando está tudo em silêncio é encontrar paz no meio da crise (ou da guerra)

Estabilidade ou calmaria, não. Paz, sim. Uma não necessariamente vem com a outra. No meio de uma série de processos de mudanças no modo de vida, algumas coisas marcantes tem acontecido. Uma delas começou quando decidi cuidar das plantas de casa depois que um eucalipto que estava conosco há mais de década morreu. Aprendi muito com elas; se tornaram companheiras enquanto trabalho. Aprendi muito com suas raízes; descobri que apesar de importantes, depois que uma árvore morre, elas precisam ser arrancadas para se colocar outra no lugar – e isso dá muito, mas muito trabalho (especialmente se tanto a terra quanto as raízes já estiverem bem secas). De todo modo, não há planta que viva sem seu fundamento: sua raiz. Depois de arrancadas as raízes mortas e secas, para que haja nova vida, quais raízes estão ali para se fixar, renascer?

Estou, imagino, no momento de reconstituir as raízes. Arrancadas as mortas e secas, o solo respirou, revirou, mas precisa de vida nova. Curiosa e coincidentemente, nas trocas de ideia internas e meditações, nas voltas por aqui e ali com minha linda magrinha Bruna Candeani, encontrei um livreto chamado “Raízes”, de um monge beneditino alemão que meus pais gostam muito, Anselm Grün. Não somos católicos, mas monges, místicos, sábios e intelectuais são sempre mais que bem-vindos nas cabeceiras de cama aqui em casa. Peguei pra ler. Pois bem, Grün me deu um caminho.

Para encontrar ou reencontrar as raízes, um dos caminhos que Grün propõe é seguirmos em busca ou através de nossos nomes. Ele propõe três etapas: 1. a etimologia do nome; 2. algum “patrono/a” do nome (santo ou santa, filósofo ou filósofa, heroína, etc.); 3. o nome para nossa família e em nossos antepassados. Interpretar destas maneiras nosso próprio nome poderia, de acordo com a proposta do monge, ajudar a encontrarmos nossas raízes, a nos recolocarmos no mundo, na terra. Segui-os.

Bruno significa “marrom”, “moreno”, “bronzeado” ou “escuro”. Fosse de raiz latina ou germânica, Bruno tem esses sentidos. Conversava com uma amiga a esse respeito ano passado e ela me indicou que muitas vezes os “mouros” (muçulmanos ou pessoas do norte da áfrica) eram chamados de “brunos”. A pele escura ou amarronzada (que já tive na infância e que retorna somente quando estou de férias longe de salas de aula, escritórios e luzes brancas da cidade cinza de São Paulo) se perdeu com o tempo e com as mudanças da vida. O que meu nome significa já teve sentido quando eu era pequeno, mesmo quando nasci. Hoje, desbotado, amarelado e encardido por falta de sol por longos anos, aparento e manifesto essa distância da raiz, do significado de meu nome. O desgaste do tempo pode arrancar o detalhe que pode dar significado para toda uma vida. Pode fazer um nome se tornar apenas mais um nome, sem conteúdo real. Continuar lendo