Eles tem medo da Libertação: a Educação proibida

Uma das primeiras atitudes da Ditadura foi tirar filosofia da grade curricular das escolas. Filosofia era proibido. Porque será? Porque filosofia é “libertadora” por si só? Não. Quando um autoritário confunde em seu discurso filosofia com comunismo ou doutrinação marxista, temos que dar muita atenção: seu medo não é quanto ao conteúdo filosófico, mas quanto a possível política que virá junto com os textos: de insubordinação, insurgência, questionamento da autoridade vigente, do sistema de poder posto. Educar é a primeira experiência política: educar para a liberdade é preparar gente para não baixar a cabeça frente a violência, dominação, opressão. A pressa em mexer na Escola só revela uma coisa: o poder transformador e libertador que essa instituição tem

Em Alagoas foi aprovado o “Projeto Escola Livre”, que proíbe os professores de trabalhar conteúdos de política, “moralidade” e religião em sala de aula. Para quem aprovou essa loucura, a educação deve ser “neutra”, mas o que realmente se quer dizer é que ela deva ser neutralizada. O Governador do Estado de São Paulo (Geraldo Alckmin) disse essa semana que uma agência de fomento tem que parar de gastar recursos com pesquisas sem “utilidade prática” para a sociedade – tipo sociologia, filosofia, história, antropologia… Essas “coisas” que são inúteis mas causam um medo danado em Ditadores, autoritários, poderosos e soldados opressores. Um deputado recentemente disse que o professor não deve educar, mas instruir os alunos; e o Secretário da Educação do Estado de São Paulo escreveu um texto dizendo que Educação não é dever do Estado, que cada família que se vire e fica sob responsabilidade dos Pais e da Igreja a formação moral dos cidadãos. Nas recentes passeatas pelo impedimento do mandato da presidente, o que não faltou foram cartazes demonizando Paulo Freire e acusando de “doutrinação” a atividade de professores em sala de aula. Porque o medo? Porque a confusão entre humanidades e “comunismo” (que é o que realmente todos eles querem dizer) é tão corriqueira? O que realmente não se quer?

Esse ataque à Educação (em especial à formação em humanidades) manifesta o poder que a atitude “besta” de entrar numa sala e falar alguma coisa tem. Esse medo desenfreado do “o que se está ensinando para nossas crianças?” só revela a transformação gigantesca que uma Escola pode promover. Esse desespero do que pode vir da próxima geração explica muito bem o porque as escolas públicas estão no estado que estão e porque programas de inclusão universitária desestabilizam os privilegiados: a Escola tem realmente poder libertador! Proibir o que pode verdadeiramente transformar é fundamental para o autoritário que deseja o controle sobre tudo e sobre todos. Educar para a liberdade será proibido.

Fico triste em pensar que Freire é atacado pelos autoritários e desprezado pelos “filósofos” e intelectuais-profissionais. No brilhantismo engajado ele já tinha visto isso: a educação, a experiência de aprendizagem, a experiência pedagógica, é o caminho libertador, a arma mais temida pelo opressor. Educar pode, sim, mudar o mundo. Não tem mudado porque não cremos e somos ensinados a desacreditar que palavras, textos, salas de aula, desenhos e cartazes são capazes de transformar. Não temos fé no povo e muito menos nos pequenos. Mas eles são a possibilidade de romper as correntes, de derrubar a gaiola. Freire poderia ter seguido para a filosofia, para o direito, para sociologia, política ou sei lá; mas percebeu o que a gente não quer perceber: o que mais dá medo em quem manda é o que o mandado pode aprender. O que mais aterroriza o opressor é a possibilidade do oprimido o questionar. Nossos incentivos, trabalhos e investimentos de vida em Educação foram baixos do fim da Ditadura pra cá; mas o pouco de respiro já produziu num boom recente gente o suficiente para descabelar autoritários. Continuar lendo

No mundo das utopias

ZZ6CF1418E“Isso é impossível! Nunca existiu nenhum lugar assim!” – não mesmo, pois se existisse não seria sem-lugar, ou seja, u-tópico. Voar também já foi algo u-tópico, sem lugar, a ponto de construírem o mito de Ícaro, que inventou asas artificiais, mas que derreteram ao se aproximar do Sol. Voar era coisa divina, inalcançável. Ainda é, em certo sentido. Mas bem menos estranho do que antes: a utopia não se realizou, mas a relação sonho/condições materiais abriu possibilidades e garantiu acontecimentos transformadores no nosso modo de vida. Como Marx coloca: as condições materiais determinam a consciência – aquilo que pensamos apenas pensamos porque é possível pensar. A transformação das ideias em conexão com as transformações das condições materiais da vida mostram pra gente que de alguma forma nossa imaginação só trabalha desse jeito porque é possível. De alguma forma, há este possível…

O sem-lugar, o utópico, inaugura a relação insana e cativante do possível-impossível. Constituímos nossos projetos, organizamos nossa vida e realizamos tarefas (sejam intelectuais, “braçais”, individuais ou coletivas) a partir do que cremos ser possível e do que estabelecemos como impossível.O utópico tem a capacidade de tensionar os polos. Como Franz Hinkelammert apresenta na Crítica da Razão Utópica, seja para Weber ou para Marx, o modo como se estrutura teoricamente a política, a sociedade ou a economia dependem de limites aos quais eles se impõe em suas produções. Quer dizer, para um seria impossível a manutenção de um sistema para sempre; para outro seria impossível sua superação. De todo modo, como Hinkelammert aponta, um e outro dependem de um exercício utópico, de tensão entre o possível e o impossível. O fim das utopias nascido junto com o pretenso fim da História de Fukuyama dependem, na base, da crença de que estamos no “melhor dos mundos”: que chegamos ao lugar sem-lugar e não há mais nenhum lugar possível. Mas se assim fosse, porque tanto esforço ideológico ou de violência física contra todo movimento capaz de pensar em outro “lugar sem-lugar”?

Realmente, o “mundo perfeito”, sem conflitos, contradições e complexidades é inalcançável em nossos projetos. É óbvio: cada ação de cada sujeito produz efeitos intencionais e não-intencionais incalculáveis, situada em suas relações intensas, abertas e aleatórias junta de outras ações de outros sujeitos. Impossível o controle absoluto sobre toda essa aleatoriedade e complexidade. Mas, então,  o utópico morre? Parece que não se levarmos em conta que a ação de um sujeito se sustenta na tensão que ele estabelece entre o possível e o impossível (ou seja, sua racionalidade utópica). O elemento utópico está aí, posto, com função extremamente prática. Porque, então, limitamos nossa imaginação utópica? Mais que isso, porque desvalorizamos os projetos coletivos que se sustentam em utopias?

Não, não acreditemos no impossível. E sim, precisamos limitar nossa imaginação utópica. Limitar, não bloquear. O limite do uso de nossa utopia está também no que Hinkelammert chama de “princípio de factibilidade”: a utopia é um princípio norteador, criador de mundo e de crença, mas que deve ser criticado a partir das situações determinadas e cotidianas. Estas impõe aquilo que é factível e o que não é. A crença não é, portanto, no impossível, mas na possibilidade que a utopia nos dá de atuação no e com o mundo. É tensionarmos consciente e criticamente a relação possível-impossível. A utopia só é possível de ser raciocinada porque há, anteriormente, condições materiais que a garantem como possível. Novamente, só dá pra pensar o que dá pra pensar. Continuar lendo

22 de abril: o dia em que esta Terra parou

descobrimento-do-brasil-18“‘Descobrir’, portanto […] é o constatar a existência de terras continentais habitadas por humanos no Atlântico, até então totalmente desconhecidas pelo europeu, que por sua vez exige ‘abrir’ o horizonte ontológico de compreensão do ‘mundo da vida cotidiana’ europeia para uma nova ‘compreensão’ da história […] a Terra havia sido ‘des-coberta’ como o lugar da ‘História Mundial’ […] a partir de uma Europa que se auto-interpreta também pela primeira vez como sendo o ‘Centro’ do acontecer humano em geral e, portanto, implementa seu horizonte ‘particular’ como horizonte ‘universal’ (a cultura ocidental). O ego moderno apareceu na confrontação com o não-ego: os habitantes das novas terras descobertas, que não aparecem como Outros, senão como o Mesmo a ser conquistado, colonizado, modernizado, civilizado, como ‘matéria’ do ego moderno. E é assim que os europeus se transformaram nos ‘missionários da civilização em todo o mundo’ – em especial com os ‘povos bárbaros'” – Enrique Dussel, 1492: O encobrimento do Outro: da origem do ‘mito da Modernidade’

22 de abril é a data oficial que indica a chegada dos portugueses às terras hoje chamadas de “brasileiras”. Dos nossos “mitos fundadores”, foi a descoberta de uma terra rica, linda, exótica. Nos nossos mitos fundadores nós nos vemos de fora. Que tipo de consciência é formada em nós, enquanto sujeitos, aprendendo que nos tornamos “nação” quando somos descobertos por um estrangeiro? Mais ainda: que tipo de história contamos quando o termo “descoberta de uma terra” esconde invasão, estupro, genocídio, exploração massiva de recursos, espoliação? Que tipo de prática política desenvolvemos quando exaltamos a chegada de um explorador-colonizador como celebração de nosso nascimento? Que tipo de subjetividade é constituída em filhos que idolatram a violência de um invasor como figura paterna? O projeto-Brasil se torna mais importante que a vida dos que aqui moravam; o enriquecimento da Metrópole mais importante do que o cuidado com os recursos que sustentam a Terra em que estão nossos pés.

Lembro que há 16 anos era celebrado o ano “500” de “des-coberta”. Lembro os shows, a festa, documentários empolgados, especiais de Tv. Lembro que eu era criança e que toda a escola se mobilizava para pintar os rostos e os corações da criançada de verde-amarelo. Lembro que o trabalho (eu estava na quarta série) do ano era fazer uma paródia sobre os 500 anos. Lembro que fiz junto de um melhor amigo, que escrevemos uma musiquinha chamada “O meu Brasil”, brincando com o hit “Ana Júlia” do Los Hermanos. A nossa paródia tinha duas estrofes, um interlúdio e o refrão – seguia exatamente a estrutura da música. Na primeira parte, contávamos da chegada de Cabral e a riqueza da terra. O refrão era o mesmo que o título da paródia. Na segunda parte a gente (infantil e sem nenhum pretensão) contávamos do massacre indígena e da surra que os portugueses deram na terra. No interlúdio a gente perguntava sobre o que seria o futuro. Ficou muito bacana a música, é um orgulhozinho aqui em casa. Coisa de criança? Sim. Inocente? Era. Inofensivo? Não. A música ficou tão “pesada” e de denúncia, que a professora  aconselhou (pediu com certa persuasão de autoridade) que mudássemos o nome e o refrão. Oficialmente saiu “O meu Brasil, eu te  amo meu Brasil”, acredita?! Ainda não superei essa mudança a contra-gosto. Mas hoje sei porque precisou mudar! Continuar lendo

A Bíblia Política: a profecia hipócrita de teólogos evangélicos

alfonsin_claima20101125_0152_8Uma verdade não é uma verdade sozinha. Ela tem corpo sentido e “testemunho” através da vida de quem a profere. O “eu sou a verdade” de Cristo é uma afirmação materialmente mais dura do que parece: eu vivo o que falo e falo o que estamos vivendo. O logos que se faz carne e habita requer que quem o siga seja testemunho vivo, ou melhor, mártir: encarne a mensagem. O crivo de verdade não é a palavra escrita, mas a Palavra Viva, que se renova a cada manhã enquanto a vivos a vivem. “O trabalho liberta” até é uma expressão válida; mas como lema cunhado acima dos portões de Auschwitz, torna-se mentira assassina. Dizer que “profecia é denúncia contra os poderosos” é verdade na boca de Dom Pedro Casaldáliga, mas tem sido falsidade peçonhenta nos textos de líderes e teólogos evangélicos

Textos tem sido escritos, mensagens pregadas, desculpas armadas e vídeos produzidos por lideranças e “estudiosos” evangélicos afirmando que “profecia é denúncia aos poderosos”, com uma ressalva importante: os poderosos são necessária e exclusivamente os “reis”. Os sacerdotes, os ricos e líderes curiosamente não entram na conta. Pior que isso, é ver que esse discurso está sendo apropriado para dizer que é função da igreja ser “denunciadora”, e por isso deve se afastar das instituições políticas: assim é capaz de “denunciar”. Denunciar quem, especificamente? Quem estiver no Governo. A partir de uma análise ou consciência politica? Não. Apenas seja contra as instituições políticas: “elas são sujas por natureza”. A função de denúncia da Igreja está sendo utilizada não para politizá-la,  mas para desarticular seus membros: o efeito gerado é o afastamento das decisões políticas, o distanciamento “do que está acontecendo lá fora”, no mundo. Na verdade, esse discurso não é para durar para sempre: é oportunismo religioso para denunciar única e exclusivamente o governo que está aí agora. Por quase 100 anos de evangelicalismo no Brasil, pela primeira vez curiosa e coincidentemente profecia está sendo “entendida” e apresentada como “denúncia”.

Além de hipocrisia e apropriação indevida, é desonestidade e violência à história de santos que lutaram verdadeiramente para propor e defender a profecia como e enquanto denúncia contra os poderosos. A verdade é que das décadas de 60 até ontem, dizer que a Igreja tinha o dom profético de denunciar os poderosos e os opressores era coisa “comunista” e pecaminosa, que atentava contra a ordem da Igreja e a proposta de um “reino”. Até ontem, para o movimento evangélico, profecia era falar do futuro. Até ontem, eram os católicos insurgentes da Teologia da Libertação que falavam essas coisas de “denúncia” e utilizavam expressões como “poderosos” e “opressão”.

Não sou católico. Sou evangélico. Mas sou devedor e admirador dos santos revolucionários inspirados por Deus que fundaram e fundamentaram numa teologia profunda, concreta, material e comprometida a profecia como denúncia contra os poderosos. Dizem que a última afirmação teológica de Dom Hélder foi “não deixem morrer a profecia”. Perseguido pela Ditadura, amigo íntimo de Paulo Freire, protetor e defensor da Teologia da Libertação dentro da estrutura conservadora da Igreja Católica Apostólica Romana, Dom Hélder entendia como o “pedagogo dos oprimidos” que “profecia é compromisso histórico […] Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais”. Profecia enquanto denúncia exige comprometimento radical, histórico e constante: só é verdadeira a profecia na boca de quem encarna a Palavra. José Comblin, também perseguido pelos militares e pela própria Igreja por denunciar as estruturas de opressão, para quem entendia que Paulo determinava a profecia como dom mais importante, essa encarnação não é abstrata, é concreta,  real. Assim, quanto à mensagem profética de Cristo diz:

“Há uma tendência de espiritualizar a mensagem de Jesus como se o Reino de Deus se limitasse aos bons pensamentos, às boas intenções ou às virtudes morais. O Reino de Deus é moral porque é material. O pecado é material e a salvação também é material. O pecado é a fome, a violência, a dominação, a desigualdade, a exclusão. O Reino de Deus é o fim da pobreza, a igualdade, a paz. mas, para torná-lo presente, haverá muita luta, muito sofrimento, muitos fracassos e muitas vitórias, incluindo perseguição e morte. Jesus não promete repouso, tranquilidade, satisfação de todos os desejos […] A Igreja deve oferecer aos mais desesperados o testemunho de sua esperança. Ela é o povo que permanece acordado e vive a esperança mostrando-a no meio das criaturas humanas mais desesperadas e excluídas”.

Antes e fundamental para se dizer que a “profecia é denúncia contra os poderosos” é o comprometimento radical com os excluídos! É isso que possibilita, encarna e determina a denúncia. Quem são os poderosos? O Estado? As instituições políticas? O Governo? O Mercado? É opressor, dominador ou poderoso todo sistema que oprime, exclui e marginaliza: gera oprimidos. Não é um ou outro, esse ou aquele. Tomando posição e se comprometendo com o oprimido, sabe-se contra quem é necessário levantar denúncia. É a partir da experiência dos excluídos, tal qual os profetas fizeram! É a partir dos pobres. É trazer de volta a vocação de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar as boas-novas aos pobres, anunciar libertação aos presos, restaurar a vista dos cegos, dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor”.

Infelizmente a denúncia conveniente de teólogos e pastores evangélicos tem outra função: não mais libertar o excluído, mas atacar o Governo enquanto distancia a igreja das decisões políticas, da comunidade política, da organização popular e de coletivos. Cria um muro para preservar um gueto pseudo-sacro-santo. Na minha própria comunidade religiosa tive que ouvir isso! Discurso vazio que afasta as pessoas da vida de verdade, da responsabilidade e comprometimento com a comunidade de vida que circunda e permeia a comunidade religiosa. Discurso que cria rebanho alienado ao invés de incentivar a participação política, formação de quadros honestos, gente que no futuro possa ser bom governante, bom cidadão, comprometido com o pobre e combatente contra a corrupção. Fazer isso pra quê? Melhor é afastar o povo das únicas instituições que organizam a sociedade e podem ser ferramenta e instrumento para a melhoria da vida da população.

O que está por trás desse discurso fácil e cômodo dos líderes evangélicos é uma analogia indevida e limitada entre “reis” e “governantes”. Ou seja: apenas os “governantes” são os poderosos opressores. Pior que isso, é perceber que as cabeças das autoridades se revelam politicamente mal formadas: pensam que as prerrogativas da monarquia foram transferidas para o Estado na República. Pelamor! A denúncia profética é contra os poderosos: líderes sociais ou políticos, sacerdotes e ricos que oprimem o Povo. A denúncia não é, portanto, contra os cargos, mas contra a OPRESSÃO, a favor dos EXCLUÍDOS. Sem este fundamento, é mero artifício político enfraquecedor da cidadania e que limita, ainda mais, as possibilidades dos oprimidos tomarem caminhos que possibilitem sair da opressão. Como Enrique Dussel escreve:

“O pecado a ser denunciado não é exclusivamente individual; o pecado não é apenas social, histórico, institucional, relação social, mas também, além disso, o pecado se organiza, tem consciência de si, funciona como sujeito […] o essencial é compreender sua práxis histórica, a de seus mensageiros (Mateus 25:41) que são também os dominadores, os pecadores, os ‘ricos’… ‘Os príncipes das nações as dominam e os poderosos as oprimem’ (Mateus 20:25). A práxis do pecado, a dominação (constituir-se como ‘Senhor’ do outro alienado) se institucionaliza através das estruturas políticas, religiosas, ideológicas, econômicas. Não há um pecado religioso de um lado e uma falta política ou econômica secular de outro. Toda dominação ou falta contra o outro é pecado contra Deus! É falso separar o pecado de um lado e as estruturas e instituições históricas de outro; porque essas são as maneiras concretas como Satã exerce seu reinado neste mundo, através dos seus anjos: os homens que dominam seus irmãos. O pecador, o ‘rico’, o dominador é o ‘enviado’ do Príncipe deste mundo para institucionalizar seu reinado; quer dizer, as estruturas históricas do pecado como ‘relação social'”.

O problema não é o Estado, o Mercado, a igreja, a Escola… O problema é a dominação, a opressão, a exclusão: ela deve ser denunciada. A profecia como denúncia está sendo utilizada para distanciar-nos, nós, enquanto fiéis, destas estruturas e da participação nelas para transformá-las, para denunciar o pecado e lutar com o excluído, com o pobre, com o oprimido. Não é denúncia “ao rei”: é denúncia à opressão, seja do rei, do líder, do sacerdote ou do rico! Isaías, por exemplo, a cada capítulo enxovalha os ricos e os sacerdotes. Habacuque ataca os líderes do povo e os sacerdotes. Amós vai até o palácio não para se distanciar da política, mas para criticá-la a partir do povo, dos excluídos, dos que estão “aqui fora”. Continuar lendo

Independência ou morte? Mais uma crítica à academia filosófica brasileira

independence_of_brazil_1888Ontem, antes de começar uma aula magna com o Jessé Souza, conversava com um parceiro de mestrado sobre os nossos estudos, os vícios e complexidades da academia, coisas boas e fardos que temos que carregar. De todo modo, entre umas risadas e outras preocupações, ele bateu amistosamente no meu ombro e disse: “boa sorte…”. É verdade, vamos precisar. Por quê? Porque se já é difícil o trabalho filosófico para quem estuda a filosofia costumeira, que dirá quem se arrisca numa “coisa” como filosofia latino-americana? Quantas vezes já não tive que ouvir e quantas muitas ainda ouvirei o clássico “mas isso não é filosofia”. Será que nós seremos o reduto desse tipo de conservadorismo? Se opto por dizer que estudo filosofia da libertação, tenho que ouvir “mas pobre não é categoria filosófica!” – e, claro, “Deus” ou “alma” são…

Mas minha preocupação é menos com a aceitação da filosofia latino-americana ou de libertação pela academia e muito mais com nossa falta de autonomia; ou melhor, de independência. Fico indignado quando dizemos e sustentamos que não existe filósofo no Brasil ou que não é preciso existir uma filosofia brasileira – como se não houvesse diferenças de pensamento, produção e necessidade em cada esquina do mundo. É cansativa a inércia e a falta de tesão por produzir conteúdo, por trabalhar filosoficamente, por ser-no-mundo aqui e agora – com toda a malandragem possível dessa expressão -, distantes da floresta negra. A produção de conteúdo nas ciências sociais como de um Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan, Milton Santos, Faoro, Antônio Candido, Roberto Schwarz, Octávio Ianni e por aí vai até o Paulo Freire como intelectual brasileiro mais influente e lido no mundo, não pode ser isolada e deixada de lado como não-material a ser trabalhado filosoficamente. Não podemos simplesmente cogitar (com toda a malandragem possível, novamente) que o que era para ser feito em filosofia, já está pronto. Jamais desenvolveremos nossos sistemas significativos de justificação, jamais trabalharemos criticamente nossos problemas.

O livro de Jessé Souza A tolice da inteligência brasileira bem que poderia ter sido escrito por um filósofo de formação acadêmica. Mas seria impossível, pois na universidade brasileira filosofia só trabalha o que é “estritamente filosófico” – seja lá o que isso signifique. O trabalho intelectual sobre as questões brasileiras tem que correr para outras salas, minimamente mais abertas e arejadas, onde é possível questionar o sujeito, pensar categorias a partir da rua de uma cidade brasileira, dos acontecimentos e experiências duras, concretas e vivas da cotidianidade social, histórica, política e cultural dessa terra. Uma das discussões centrais no livro de Jessé é a crítica à separação ontológica e à hierarquia corpo-espírito presente nas estruturas intersubjetivas e promovidas pelas instituições político-sociais do e no Brasil, com suas singularidades e peculiaridades. Não é material para a filosofia? Jessé resgata Freyre e Sérgio Buarque fazendo críticas metodológicas e conceituais aos autores, abrindo janelas teóricas e possibilidades a serem avançadas e aprofundadas. Em filosofia seria um prato cheio. É possível? Em nossos locais convencionais de trabalho, parece que não.

Não dá para entender como fechamos nossos olhos para a construção histórica do pensamento no Brasil: nascemos da colonização, somos filhos da escravidão. O que temos de conteúdo, o modo como trabalhamos racionalmente nossas questões, está tudo carregado de colonização! Nós precisamos, sim, nos libertar! Isso não significa abandonar os autores, tradições e conteúdos vindos de fora; significa não baixar a cabeça em submissão, sem crítica, sem questionamento, sem grito, sem assumir que as condições materiais interferem diretamente nas possibilidades e no tipo de produção de conteúdo. Para a filósofa libertar a filosofia de seu machismo, tem que assumir que sofreu com o machismo filosófico. Para o filósofo negro libertar a filosofia do racismo, tem que assumir que há racismo filosófico. Para o filósofo brasileiro libertar a filosofia de sua colonização (seja colonizadora ou colonizada), tem que assumir que seu pensamento (e sua história) foi colonizado.

O grito por independência do pensamento não destrói ou aniquila a tradição – seria impossível -, mas firma um marco crítico que exige constante vigia e cuidado. É assumir que há um colonizador em nós que nos impede constantemente de ver as correntes, nos condiciona a achá-las boas, nos trava, oferece uma frágil segurança para evitar a certeza da crise. É quando a gente tem que escolher se vale mais ficar na casa grande ou receber um “boa sorte” porque a empreitada será difícil. Teríamos que assumir nossa história, reconhecer que somos filhos do estupro, que não há cultura sagrada, está cheia de sangue e que será com esse material que trabalharemos filosoficamente produzindo “mundo” no mundo.

Não é que Descartes ou Kant são grandes cretinos que planejaram destruir nossa vida. Sem ingenuidades. É que exatamente a estrutura que promoveu a colonização estava sustentada em ideias instituídas. Quem colonizou não colonizou sem pensar, crer e ter certeza racional e justificada de que deveria ser assim. Como Aníbal Quijano escreveu: “Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação colonial europeia, se foi constituindo o complexo cultural conhecido como a racionalidade/modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Esta contemporaneidade entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade/modernidade não foi de nenhum modo acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”. Não é coincidência; faz parte de uma produção social, política, histórica e cultural. Só. Continuar lendo

Nasci para ser senhor de engenho: o colonizador que habita na gente

1214065231310_f“O que nos forma são as instituições”, é o que Jessé Souza tem apontado. Não somos filhos do encontro mágico ou trágico do branco com o negro, do índio com o branco, do negro com o índio. Esses encontros são possibilitados por uma estrutura ou sistema instituído entre os sujeitos. É assim que o que nos forma são as instituições. O que funda o Brasil que vivemos hoje não é o encontro entre pessoas: é a exploração colonial e, principalmente, a instituição da escravidão. É ela que regula a sociedade por mais de 400 anos, media as relações entre os sujeitos, estabelece a divisão de trabalho e sustenta crenças, direciona a construção das cidades, organização no campo, formação das famílias, costumes…

Somos filhos da escravidão. Não se apagam 400 anos com uma canetada de princesa. Como Joaquim Nabuco profetizou: nunca seremos uma nação enquanto não superarmos as marcas da escravidão. Para ele, isso levaria uns séculos… Mas para a gente, não! Afinal, escravos já foram “abolidos”, mesmo. Ahá! Exatamente isso: não foi a escravidão “abolida”, os escravos é que foram abolidos. Abolição da escravatura foi jogar gente do nada para o nada. A força de trabalho que sustentava o modo de produção foi jogada fora, só! Houve mudança estrutural? O sistema foi golpeado radicalmente? Não. Literalmente, foi para “inglês ver”. A estrutura se mantém: as correntes são postas de lado e substituídas por uma coisa inusitada: salário (mínimo). O que prende o escravo/empregado ao senhor-de-engenho/patrão não é mais a lei do chicote, mas a necessidade de moeda para comprar pão.

São as instituições que nos formam. Escravos são abolidos, mas a instituição da escravatura não foi substituída, suprimida ou “revolucionada”: houve uma transformação, sem crise sistêmica. Somos filhos e fruto da escravidão. Isso não aconteceu há milhares de anos, foi ontem, enquanto fomos o último país a abolir a escravidão: 1888, três anos antes de nos “tornarmos uma República”. Aliás, como nasce essa República? Da revolta social? Povo? Não; Golpe Militar. Ninguém viu e nem ficou sabendo. Jornais da época relatam que as pessoas se perguntavam se era comemoração do dia da Independência fora de época. Ninguém, viu, participou ou entendeu que raio era aquilo.

O que nos forma são as instituições! É um Estado republicano que nasce de um golpe militar e que tinha como estrutura centenária a exploração abusiva da terra, a escravidão, o massacre social. Uma igreja colonial que mantém as crenças, os costumes e as práticas religiosas do tempo de escravidão inalteradas (e o país era católico! Todo nascido crescia nessa igreja, aprendia essa religião). Escola era para rico e nobre. Filho de senhor de engenho ia estudar em Portugal, dar um rolê na França, voltava para cá para ser médico, advogado, parlamentar ou manter o trabalho de fazendeiro senhor-de-engenho do pai. E a população de verdade? A “galera”, o “povão”? Ou com chicote nas costas, ou sendo funcionário/capataz, ou ralando muito para conseguir vender o fruto de seu trabalho, coisa pouca, para os donos da escravidão. Nasce na casa grande, no comércio ou na senzala. Mas livre? Daquele jeito que a lenda de indivíduos felizes e contentes, ninguém no mundo nasce, não. Somos formados pelas instituições!

No mestrado estamos trabalhando Teoria Crítica. Uma das perguntas norteadoras é “como é possível nascer um sujeito fascista?”. Isso tem deixado a gente bem agoniado. Mas, adaptando um pouco à nossa história, nossa terra e nossa cultura, a pergunta aqui é “como é possível nascer um sujeito colonial?”. As tensões políticas tem apresentado faces de nossa estrutura subjetiva que a gente normalmente finge não ver: temos em nós senhores-de-engenho, capatazes e escravos. Criei indevidamente esses três modelos teóricos de sujeito, a lá um esqueminha weberiano sem vergonha. Parece que tendemos mais para um lado, para outro… Temos em nós os três em diferentes medidas e situações. A questão é: somos sujeitos coloniais, e as instituições que nos formam nos forçam a isso. Continuar lendo