Independência ou morte? Mais uma crítica à academia filosófica brasileira

independence_of_brazil_1888Ontem, antes de começar uma aula magna com o Jessé Souza, conversava com um parceiro de mestrado sobre os nossos estudos, os vícios e complexidades da academia, coisas boas e fardos que temos que carregar. De todo modo, entre umas risadas e outras preocupações, ele bateu amistosamente no meu ombro e disse: “boa sorte…”. É verdade, vamos precisar. Por quê? Porque se já é difícil o trabalho filosófico para quem estuda a filosofia costumeira, que dirá quem se arrisca numa “coisa” como filosofia latino-americana? Quantas vezes já não tive que ouvir e quantas muitas ainda ouvirei o clássico “mas isso não é filosofia”. Será que nós seremos o reduto desse tipo de conservadorismo? Se opto por dizer que estudo filosofia da libertação, tenho que ouvir “mas pobre não é categoria filosófica!” – e, claro, “Deus” ou “alma” são…

Mas minha preocupação é menos com a aceitação da filosofia latino-americana ou de libertação pela academia e muito mais com nossa falta de autonomia; ou melhor, de independência. Fico indignado quando dizemos e sustentamos que não existe filósofo no Brasil ou que não é preciso existir uma filosofia brasileira – como se não houvesse diferenças de pensamento, produção e necessidade em cada esquina do mundo. É cansativa a inércia e a falta de tesão por produzir conteúdo, por trabalhar filosoficamente, por ser-no-mundo aqui e agora – com toda a malandragem possível dessa expressão -, distantes da floresta negra. A produção de conteúdo nas ciências sociais como de um Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan, Milton Santos, Faoro, Antônio Candido, Roberto Schwarz, Octávio Ianni e por aí vai até o Paulo Freire como intelectual brasileiro mais influente e lido no mundo, não pode ser isolada e deixada de lado como não-material a ser trabalhado filosoficamente. Não podemos simplesmente cogitar (com toda a malandragem possível, novamente) que o que era para ser feito em filosofia, já está pronto. Jamais desenvolveremos nossos sistemas significativos de justificação, jamais trabalharemos criticamente nossos problemas.

O livro de Jessé Souza A tolice da inteligência brasileira bem que poderia ter sido escrito por um filósofo de formação acadêmica. Mas seria impossível, pois na universidade brasileira filosofia só trabalha o que é “estritamente filosófico” – seja lá o que isso signifique. O trabalho intelectual sobre as questões brasileiras tem que correr para outras salas, minimamente mais abertas e arejadas, onde é possível questionar o sujeito, pensar categorias a partir da rua de uma cidade brasileira, dos acontecimentos e experiências duras, concretas e vivas da cotidianidade social, histórica, política e cultural dessa terra. Uma das discussões centrais no livro de Jessé é a crítica à separação ontológica e à hierarquia corpo-espírito presente nas estruturas intersubjetivas e promovidas pelas instituições político-sociais do e no Brasil, com suas singularidades e peculiaridades. Não é material para a filosofia? Jessé resgata Freyre e Sérgio Buarque fazendo críticas metodológicas e conceituais aos autores, abrindo janelas teóricas e possibilidades a serem avançadas e aprofundadas. Em filosofia seria um prato cheio. É possível? Em nossos locais convencionais de trabalho, parece que não.

Não dá para entender como fechamos nossos olhos para a construção histórica do pensamento no Brasil: nascemos da colonização, somos filhos da escravidão. O que temos de conteúdo, o modo como trabalhamos racionalmente nossas questões, está tudo carregado de colonização! Nós precisamos, sim, nos libertar! Isso não significa abandonar os autores, tradições e conteúdos vindos de fora; significa não baixar a cabeça em submissão, sem crítica, sem questionamento, sem grito, sem assumir que as condições materiais interferem diretamente nas possibilidades e no tipo de produção de conteúdo. Para a filósofa libertar a filosofia de seu machismo, tem que assumir que sofreu com o machismo filosófico. Para o filósofo negro libertar a filosofia do racismo, tem que assumir que há racismo filosófico. Para o filósofo brasileiro libertar a filosofia de sua colonização (seja colonizadora ou colonizada), tem que assumir que seu pensamento (e sua história) foi colonizado.

O grito por independência do pensamento não destrói ou aniquila a tradição – seria impossível -, mas firma um marco crítico que exige constante vigia e cuidado. É assumir que há um colonizador em nós que nos impede constantemente de ver as correntes, nos condiciona a achá-las boas, nos trava, oferece uma frágil segurança para evitar a certeza da crise. É quando a gente tem que escolher se vale mais ficar na casa grande ou receber um “boa sorte” porque a empreitada será difícil. Teríamos que assumir nossa história, reconhecer que somos filhos do estupro, que não há cultura sagrada, está cheia de sangue e que será com esse material que trabalharemos filosoficamente produzindo “mundo” no mundo.

Não é que Descartes ou Kant são grandes cretinos que planejaram destruir nossa vida. Sem ingenuidades. É que exatamente a estrutura que promoveu a colonização estava sustentada em ideias instituídas. Quem colonizou não colonizou sem pensar, crer e ter certeza racional e justificada de que deveria ser assim. Como Aníbal Quijano escreveu: “Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação colonial europeia, se foi constituindo o complexo cultural conhecido como a racionalidade/modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Esta contemporaneidade entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade/modernidade não foi de nenhum modo acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”. Não é coincidência; faz parte de uma produção social, política, histórica e cultural. Só. Continuar lendo

Profecia, justiça e construção da cidade – Daniel Penna

grafite arte urbana QBRK (11)[8]Publicamos hoje o texto de Daniel Penna, um dos participantes do Encontro de Estudo Bíblico de Adolescentes. O Dani trabalha temas como opressores-oprimidos, justiça, profecia, utopia e os processos políticos e projetivos de construção de uma cidade. A “cidade”, aqui, tem sentido da pólis ou civitas da tradição: o lugar político e cidadão. Todos os insights estão apresentados num panorama geral do livro bíblico de Miquéias:

Miquéias foi um profeta de Morasti-Gat em Judá, na época dos Reis Jotão, Acaz e Ezequias (ver 2º livro dos Reis, capítulos 15, 16 e 17). O livro de Miquéias fala muito sobre coisas ruins e problemas na politica da região. O assunto política é bem visivel nesse livro, por causa de citações e presença de graus hierarquicos muito bem definidos entre oprimidos e opressores. O livro apresenta dois tipos de profeta: os falsos profetas, que respondem aos governantes, e os reais profetas que respondem ao povo. Os falsos profetas são aqueles que falarão aquilo que é agradavel ao ouvido, até mesmo mentiras. Já os profetas reais são aqueles que sempre falarão a verdade, independente se ela é agradavel ou não.

Miquéias era um profeta real do povo, ele prega contra a injustiça e pecado dos opressores que são os governantes.   Continuar lendo

A Bíblia Política: último comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8Este é nosso último texto em busca da Bíblia Política: último comentário à Miquéias. Para quem tem lido e acompanhado nossos textos anteriores, algumas questões estão claras: há uma denúncia à cidade e à sua organização por parte de Miquéias. A cidade está corrompida, os sacerdotes, os líderes, os ricos e os governantes são corruptos. A cidade boa, Terra Prometida, Sião, foi construída com sangue – a um custo muito caro! Miquéias, então, enquanto denuncia, cria uma outra Sião, construída a partir da Justiça. Esta cidade boa anunciada se torna uma ferramenta crítica: é olhando para a possibilidade sem-lugar de algo melhor que somos capazes de encontrar e criticar a corrupção aqui. Assim, é possível criar um plano estratégico real e concreto para superar os problemas da cidade: um plano de luta. Agora, por fim, encontraremos o fundamento principal para a construção da cidade

Assim, este texto tem dois momentos: 1. proposta de uma leitura de Miquéias, deixando apenas os trechos (perícopes: divisão do texto bíblico) indicados para que quem quiser, faça sua própria interpretação final. 2. Uma avaliação do método do Encontro de Estudo Bíblico, suas implicações, produções e possibilidades. Cremos que teorizar o que fizemos possibilitará transmitir nossa prática e, quem sabe, reproduzir este movimento em outros lugares e momentos.

Agora, então, deixaremos apenas os trechos indicados para que cada um faça sua leitura. Tendo em conta o que foi construído até aqui (os comentários anteriores e seus significados -por exemplo, a diferença entre o Povo e a nação, o sentido de utopia, etc.), cabe uma conclusão e leitura autônoma, própria. Fica como dica alguns passos metodológicos: 1. Não leia os subtítulos e os números de versículo e capítulo, pois são apenas indicações para facilitar encontrar os textos. Podemos criar nossos próprios subtítulos e organização dos versículos e capítulos; 2. Faça perguntas ao texto, como ‘quem está falando?’, ‘para quem está falando?’, ‘o que ele quer dizer com ‘x’?’…; 3. Anote suas “hipóteses” de resposta às perguntas, mas deixe que o texto te diga se suas hipóteses estão corretas ou não. Deixe ser surpreendido pelo que está lendo. Segue nossa divisão de texto seguido de subtítulos criados por nós, como indicação de possibilidade de leitura:

O QUE DEVE SER PRATICADO NA CIDADE?

“Com o que eu poderia comparecer diante do Senhor e me curvar perante o Deus exaltado? Deveria oferecer sacrifício e holocausto de um bezerro? Ficaria o Senhor satisfeito com milhares de carneiros, com dez mil ribeiros de azeite? Devo oferecer o meu filho mais velho por causa da minha transgressão, o fruto do meu corpo por causa do pecado que eu cometi? Ele mostrou a você, oh Homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus.” [Miquéias 6: 6 – 8]

OS RICOS NÃO PRATICAM  A JUSTIÇA

“A voz do Senhor clama contra a cidade; é sensato temer o Seu Nome!  Ouçam, tribo de Judá e assembleia dos cidadãos! Na casa do ímpio não há o tesouro da impiedade e a medida falsificada que é maldita? Poderia alguém ser puro com balanças desonestas e pesos falsos? Os ricos que vivem entre vocês são violentos; sua gente é mentirosa e as suas línguas falam enganosamente. Comerão, mas não ficarão satisfeitos: continuarão de estômago vazio. Acumularão, mas não preservarão nada: entregarei tudo o que guardarem à espada. Plantarão, mas não colherão: vão espremer azeitonas, mas não se ungirão com azeite. Espremerão uvas, mas não beberão vinho.” [Miquéias 6:9 – 15]

OS GOVERNANTES, OS JUÍZES E OS CIDADÃOS NÃO AMAM A FIDELIDADE

“Estou na desgraça! Sou como quem colhe frutos de verão na respiga da vinha: não há nenhum cacho de uva para provar, nenhum figo novo que tanto desejo. Os piedosos desapareceram do país; não há um justo sequer. Todos estão à espreita para derramar sangue: cada um caça o irmão com uma armadilha. Com as mãos prontas para fazer o mal o governante exige presentes, o juiz aceita o suborno, os poderosos impõe o que querem. Todos tramam em conjunto! O melhor deles é como o espinheiro, e o mais correto é pior que uma cerca de espinhos. Chegou o dia anunciado por suas sentinelas, o dia do castigo de Deus. Agora reinará a confusão entre eles. Não confie nos vizinhos, nem acredite nos amigos. Até com aquela que o abraça, tenha cuidado com o que diz, pois o filho despreza o pai, a filha se rebela contra a mãe, a nora contra a sogra. Os inimigos do Homem são seus próprios familiares. Mas quanto a mim, ficarei atento ao Senhor, esperando em Deus, o meu Salvador, pois Ele me ouvirá” [Miquéias 7: 1 – 7]

A CIDADE NÃO ANDA HUMILDEMENTE COM O SENHOR

“Não se alegre, cidade, minha inimiga, com minha desgraça. Embora tenha caído, vou me levantar. Embora esteja morando nas trevas, o Senhor será a minha luz. Por eu ter pecado contra o Senhor, suportarei a sua ira até que ele apresente a minha defesa e estabeleça meu direito. Ele me fará sair para a luz, contemplarei sua Justiça. Então a minha inimiga o verá e ficará coberta de vergonha. Ela me disse: ‘Onde está o Senhor, teu Deus?’. Meus olhos verão sua queda, ela será pisada como o barro nas ruas. O dia da reconstrução dos seus muros chegará, o dia em que se ampliarão suas fronteiras virá” [Miquéias 7: 8  – 11]

MAS O POVO SERÁ CUIDADO

“Pastoreia teu povo com o teu cajado, o rebanho da tua herança que vive à parte numa floresta em verdes pastagens […] Quem é comparável a você, Deus? Você que perdoa o pecado e esquece a transgressão do remanescente da sua herança. Você que não permanece irado para sempre, mas tem prazer em mostrar amor. De novo terá compaixão de nós; pisará em nossas maldades e atirará todos os nossos pecados nas profundezas do mar. Mostrará fidelidade a Jacó e bondade a Abraão, conforme prometeu sob juramento aos nossos antepassados em tempos antigos” [Miquéiias 7: 14 – 20]

Encontros de Estudo Bíblico:

I. O início

O Encontro de Estudo Bíblico é fruto da exigência de adolescentes de uma comunidade cristã. Eles apresentaram o desejo, ou até uma demanda, de continuar ou fortalecer seu processo de formação religiosa. A partir da queixa de haver uma lacuna ou ausência de trabalho com os conteúdos bíblicos e elementares para uma comunidade religiosa, criou-se o primeiro Encontro. Como experiência exitosa, mas ainda não estruturada, este espaço serviu como abertura à possibilidade de se trabalhar verdadeira e efetivamente a leitura e interpretação Bíblica. Depois de um tempo, com trabalhos pontuais e melhor estruturação teórica e técnica, foram realizados mais 2 Encontros. Duas coisas intrigantes: 1. a lacuna comunitária na formação religiosa dos adolescentes; 2. o desejo de se estudar a Bíblia como livro-fonte da religiosidade. “Por fora” da comunidade, alguns dos participantes procuraram modos de trabalhar a leitura e interpretação bíblica, mas foram insuficientes – o que indica uma possível lacuna da religião no trabalho de formação de sua juventude. Continuar lendo

A Bíblia Política: penúltima parte do comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8Nossa busca pela Bíblia política chega ao penúltimo passo. Em 5 partes, fizemos uma leitura comunitária que nos possibilitou produções muito ricas e diferentes das tradicionais. O próprio exercício pedagógico, o modo como realizamos os encontros e as interpretações, é revolucionário por si só: a participação ativa e contínua de todos os leitores, com contribuições críticas e abertura das possibilidades que surgem em cada trecho, supera a relação especialista-leigo, líder-massa. É uma experiência democrática. Isso requer que analisemos o que aconteceu para tentarmos reproduzir, de algum modo, e transmitir esta experiência para outros – ou seja: teorizar. Mas, neste momento, faremos nossa última interpretação do texto de Miqueias propriamente, deixando para o próximo uma avaliação crítica do que aconteceu

Assim, nosso penúltimo comentário está dividido em 3 partes: 1. Retorno ao necessário possível (depois de colocada a utopia como um momento metodológico do pensar no trecho anterior, Miqueias retoma a necessidade de se organizar para solucionar os problemas atuais, que estão acontecendo); 2. Plano de luta (veremos a arquitetação de um plano estratégico para superar a opressão realizada pelos líderes corruptos); 3. Resposta aos que questionam a luta (como se houvesse quem discordasse da necessidade de se colocar contra a corrupção e opressão, Miqueias lança mão da Palavra do Senhor, que traz a tona a memória do povo, em sua vida e processo de libertação, em todas as histórias em que foram escravos e, com a luta, puderam se libertar).

RETORNO AO NECESSÁRIO POSSÍVEL

“Agora, porque  gritar tão alto? Você não tem rei? Morreu seu conselheiro para que tua dor seja tão forte quanto a de uma mulher em trabalho de parto? Se contorça em agonia, povo da cidade de Sião, como uma mulher em trabalho de parto, porque agora terá que deixar seus muros para habitar em campo aberto. Você irá para a Babilônia e lá será libertada. Lá o Senhor a resgatará da mão dos seus inimigos. Mas agora muitas nações estão contra você. Elas dizem: ‘Que sião seja profanada e que isso aconteça agora, diante de nossos olhos!’. Mas elas não conhecem os pensamentos do Senhor; não compreendem o plano daquele que as ajunta como feixes para serem colhidas […] Reúna as tropas, cidade murada! Há um cerco contra nós. O líder de Israel será ferido no rosto com uma vara” [Miqueias 4:9 – 5:1]

Em nosso comentário anterior, vimos que Miqueias utilizou do método utópico: vislumbrou como deveria ser o mundo – sem corrupção e violência, plural e produtivo. Miqueias não faz desse modelo um “horizonte” ou “alvo”, mas uma possibilidade que nos ajuda a reconhecer o que está errado “por aqui”. Ele toma posição de um não-lugar para reconhecer as falhas de seu lugar. Este método utópico ou a utilização da utopia como passo metodológico para um “plano estratégico”, segue para o trecho acima, no qual o profeta levanta a cabeça e olha em volta: a cidade está sofrendo, as lideranças são frágeis e inimigos estão a espreita.

Miqueias percebe que Sião não resistirá ao ataque: está corrompida e corroída por dentro. Assumindo a impossibilidade de “vencer esta batalha”, estrategicamente para a libertação do povo (não de um ou outro escolhido, mas do Povo – para saber o que significa esta palavra, dê uma olhada no nosso segundo comentário), Miqueias propõe que a cidade deva ser deixada; terão que largar a segurança do monte par ao campo aberto. Serão levados para a Babilônia. A crise, o  sofrimento de ter que reconhecer a fraqueza e honestamente assumir a fragilidade e a impossibilidade de se lutar contra tudo e todos ao mesmo tempo, não é um problema, mas um acontecimento. Para certos “fins”, acontecimentos imediatos, não se tem o que fazer. Então, no plano de luta de Miqueias, o combate direto é impossível, pois é necessário reconhecer que não temos o que fazer: teremos que largar mão da segurança e mergulhar na crise; mas juntos, como povo.

A crise é aceita e as fraquezas internas também. A “cidade utópica” não foi esquecida e nem é o horizonte a ser alcançado. Miqueias deseja alcançar a libertação do povo, apenas. O Povo é um sonho maior que a cidade. A Sião e a Jerusalém como Terra Prometida possibilitaram reconhecer que a cidade em que estão é fraca, corrompida e doente. Teremos que sair… Este é o plano!

PLANO DE LUTA POSSÍVEL Continuar lendo

A Bíblia Política: segunda parte do comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8Nossa formação político-religiosa exige cuidado. Este processo de leitura não foi feito por uma única pessoa: estes textos são fruto de uma leitura comunitária da Bíblia. Não podemos falar de política e de formação política a partir de um indivíduo, isoladamente. Política é  o que acontece na “cidade”: nos grupos reunidos discutindo seus problemas comuns e cotidianos. A Bíblia lida solitariamente produz uma única interpretação e mantém a estrutura líder-massa. Deste modo, impedimos uma relação verdadeiramente política, aberta e democrática. A busca pela Bíblia Política continua. Nela, devemos crer de maneira crítica. Crítica não é abandono: é o modo de trazer à tona os fundamentos escondidos, desapercebidos ou quase esquecidos

Nosso segundo texto-comentário ao livro de Miquéias está dividido em 3 partes. Serão lidos trechos dos capítulos 2 e 3 do livro. Críticas, dúvidas, comentários e propostas são mais que bem-vindas! As três subdivisões do texto foram: 1. O verdadeiro povo e seu rei (reconheceremos uma diferença que o profeta estabelece entre o povo e os governantes); 2. Força e justiça: onde o profeta se firma (veremos Miquéias denunciar a corrupção dos outros profetas e buscar firmeza na força e na justiça); 3. Corrupção generalizada: esta cidade não tem mais jeito (comentaremos que todos os campos da cidade – político, religioso, pedagógico, legal… – são opressores e injustos; até a criação de um “bom lugar” é com sangue e impiedade).

O VERDADEIRO POVO E SEU REI

“De fato, vou ajuntar todos vocês, de Jacó. Sim, vou reunir o remanescente de Israel. Eu os ajuntarei como ovelhas num aprisco, como um rebanho numa pastagem. Haverá o barulho de uma grande multidão. Aquele que abre caminhos irá na frente deles; eles passarão pela porta e sairão. O rei deles, o Senhor, os guiará.

Ouçam, vocês que são líderes em Jacó, governantes na nação de Israel! Vocês deveriam conhecer a justiça! Mas odeiam o bem e amam o mal. Vocês arrancam a pele do meu povo e a carne dos seus ossos. Aqueles que comem a carne do meu povo, arrancam sua pele, despedaçam os seus ossos e os cortam como se fossem carne para a panela um dia clamarão ao Senhor! Mas ele não responderá… Naquele tempo ele esconderá deles o rosto por causa do mal que tem praticado” (Miquéias 2: 12-13 e 3: 1-4)

Assim Miquéias segue não falando o que convém, mas o que é necessário. Falar o necessário, sobre a necessidade, é o que faz o verdadeiro profeta. Miquéias anuncia que o Senhor guiará seu povo, o povo de Jacó, a nação de Israel. A cena descrita parece muito com o que acontece no Êxodo: o Senhor a frente do povo abrindo caminhos para que pudessem passar e sair. Mas porquê o povo deveria sair? No texto anterior, vimos que as cidades estavam corrompidas e que falsos profetas não denunciavam esta corrupção. Vimos que Miquéias falava em determinado tempo para determinados reis. As catástrofes eram sinal da corrupção e os acusados eram os líderes em Samaria e em Jerusalém. Porquê o povo será salvo?

No trecho acima percebemos uma sutileza: existe quem é de Jacó e de Israel e quem “está” em Jacó e “está” em Israel. O povo de Jacó e de Israel será juntado pelo Senhor e sairá daquele lugar corrompido, daquelas cidades feridas. Serão como o rebanho guiado por seu pastor. Diferente daqueles que não são de Jacó e de Israel, mas são chefes e governantes em Jacó, em Israel. O profeta denuncia um abismo que há entre o povo  e seus líderes: o povo é de Israel, seus chefes e governantes apenas estão por lá…

E o que faz com que esses governantes sejam rejeitados pelo Senhor, não considerados como parte de seu povo? Eles “deveriam conhecer a justiça! Mas odeiam o bem e amam o mal; arrancam a pele do meu povo e a carne dos seus ossos”. Os governantes deveriam conhecer a justiça! Não a conhecem.  Por isso são rejeitados, são excluídos do verdadeiro povo de Israel. Sinal de que o povo enquanto povo conhece a justiça e a pratica; mas é oprimido e mastigado por seus governantes injustos. O povo justo sofre nas mãos de governantes injustos, que arrancam sua pele e a carne de seus ossos.

Claramente o profeta defende o povo e ataca os governantes. O povo romantizado como justo é o verdadeiro povo de Deus; enquanto que os governantes são vistos como opressores que não seguem a justiça divina. Mas quem é o povo? Essa palavra anda muito desgastada e é comumente entendida num sentido pejorativo. Se o profeta defende o povo, que em suas palavras o Senhor chama de “meu povo”, é porque vê esta categoria com bons olhos. Enrique Dussel, tentando resgatar o sentido bom de povo, escreveu: “povo é um ‘bloco comunitário’ dos oprimidos de uma nação […] é o povo como sujeito histórico da formação social, do país ou nação. ‘Povo cubano’, ‘povo nicaraguense’, ‘povo brasileiro’ são os que atravessam a história […] O povo como dominado é massa; como exterioridade ao sistema é reserva escatológica; como revolucionário é construtor da história”. Aqui, o “povo de Jacó” atravessa a história, passará pela porta e sairá guiados pelo Senhor.

Os governantes, distantes do povo e opressores do povo, praticam o mal. Um dia, diz o profeta, clamarão ao Senhor, mas Ele não os responderá. Neste dia estará a frente de seu povo, longe dos líderes que estão em Israel, e esconderá seu rosto enquanto segue em frente…

FORÇA E JUSTIÇA: ONDE O PROFETA SE FIRMA

“Assim diz o Senhor: ‘Profetas que fazem o meu povo se desviar e que proclamam a paz quando lhes dão o que mastigar, mas que proclamam guerra santa contra quem não lhe enche a boca; por tudo isso, a noite virá sobre vocês – uma noite sem visões! Haverá trevas sem adivinhações. O sol se porá e o dia ficará escuro para estes profetas. Os videntes, envergonhados, e os adivinhos constrangidos, todos cobrirão o rosto porque não haverá resposta da parte de Deus’. Quanto a mim, porém, graças ao poder do Espírito do Senhor, estou cheio de força e de justiça para declarar a Jacó sua transgressão e a Israel o seu pecado:” (Miquéias 3: 5-8) Continuar lendo

A Bíblia Política: primeira parte do comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8A partir de conversas com adolescentes, num Encontro de Estudo Bíblico, surgiu a ideia de escrever textos-comentário ao livro de Miquéias – de tradição profética milenar. Como comentei em outro post, é a busca pela Bíblia Política. A formação política de cidadãos politizados não se restringe à preparação para eleições e utilização de uma urna. Devem ser envolvidas nesse projeto todas as instituições: civis e governamentais. Igrejas são lugares de formação política e social de pessoas. As tradições constituem e determinam as atuações todos os campos – familiar, pedagógico, político, econômico, etc. Não podemos rejeitar ou ignorar este fato. Se nós religiosos que crítica e honestamente desejamos um país melhor não nos engajarmos no processo de formação e discussão política, algum cretino o fará. Se os verdadeiros pastores vão embora, os lobos fazem a festa (olhem para o Congresso atual…)

Este texto-comentário ao livro de Miquéias está dividido em 4 partes. Serão lidos trechos dos capítulos 1 e 2 do livro. Críticas, dúvidas, comentários e propostas são mais que bem-vindas! As quatro subdivisões do texto foram: 1. Tempo e Lugar (comentaremos que a profecia tem data, local e destinatários determinados); 2. Catástrofes como símbolo da acusação (indicaremos que os acontecimentos históricos são utilizados como símbolo do que acontece comumente nas relações político-sociais); 3. Quem há de sofrer (a descrição geral dos acusados pelo profeta em nome do Senhor); e 4. Quem é o profeta e o que é profecia? (respondendo sem responder, abriremos espaço para pensarmos o papel do profeta e o que ele está fazendo em seu tempo). Espero que seja útil:

TEMPO E LUGAR: “A palavra do Senhor que veio a Miquéias, de Moresete, durante o período dos reinados de Jotão, Acaz e Ezequias, reis de Judá. Esta é a visão que ele teve a respeito de Samaria e de Jerusalém” (Miquéias 1: 1)

A gente precisa arrumar a cabeça para ler os textos antigos. Se para nós são sagrados, então, devemos ter um cuidado mais especial: deixar que ele nos diga alguma coisa, e não nós o obriguemos a dizer o que queremos ouvir. É muito comum, por exemplo, pensarmos que profecia é uma previsão bagunçada e enigmática sobre um futuro distante e perdido. Bem, até pode acontecer. Mas isso não é profecia: é vidência, visão, adivinhação…

O livro de Miquéias determina o lugar, a data e o para quem o profeta está se dirigindo. Em Judá, no período dos reis Jotão, Acaz e Ezequias. A visão que o profeta teve tinha endereço certo: Samaria e Jerusalém de  seu tempo. Em 2 Reis do capítulo 15 ao 17, descobrimos quem são estes reis Jotão, Acaz e Ezequias. Todos eles foram “péssimos” reis: tiveram um período curto de governo, em um país corrompido e que acabou por ser, no final desta sequência real, invadido e destruído pelos assírios – tendo como resultado o exílio do povo. O que a abertura do livro de Miquéias nos indica é que sua profecia não falará de um futuro distante ou de enigmas indecifráveis, mas daquilo que estava acontecendo em Samaria e em Jerusalém durante o reinado destes senhores.

CATÁSTROFES COMO SÍMBOLO DA ACUSAÇÃO: “Ouçam todos os povos; oh, terra e todos os que nela habitam! Que o Senhor, o Soberano, do seu santo templo testemunhe contra vocês. Vejam! O Senhor está saindo de sua casa: Ele desce e pisa nos lugares altos da terra; as montanhas se derretem como cera sob o efeito do fogo. E os vales se racham no meio como se fossem rasgados pelas águas que descem velozmente pela encosta. Tudo por causa da transgressão de Jacó, dos pecados da nação de Israel. E qual é a transgressão de Jacó? Por um acaso não é a cidade de Samaria? Qual é o altar idólatra de Judá?Por acaso não é a cidade de Jerusalém?

Por isso farei de Samaria um monte de entulho num campo aberto, um lugar para se plantar vinhas. Atirarei suas pedras no vale e porei para fora seus alicerces. Todas as suas imagens esculpidas serão despedaçadas e todos os seus ganhos imorais serão queimados. Destruirei todos os seus símbolos! Visto que o que ela juntou foi com ganho de prostituição, como salário de prostituição a ser utilizado […] Raspem a cabeça em pranto por causa dos filhos nos quais tanto se alegram. Fiquem calvos como uma águia, porque eles serão tirados de vocês e levados para o exílio” (Miquéias 1: 2 – 15)

O profeta utiliza das catástrofes como símbolo, como retrato da ferida de Samaria e Jerusalém nos tempos daqueles reis. Ao que parece, o Senhor está descendo para pôr fim ao que está errado, corrompido. Nos versículos que saltamos, todas as cidades são acusadas de transgressões e erros. Algo nas cidades está errado e precisa ser reparado. O que temos, por enquanto, é que seus ganhos, aquilo que as cidades possuem, são ganhos “imorais”. Se isso significa corrupção, abuso, opressão, roubo… Não sabemos. O que sabemos é que há uma ferida exposta e que por causa dela algo terrível vai acontecer.

Podemos supor, por exemplo, que no período tenha havido em algum lugar uma erupção vulcânica, um terremoto ou um desbarrancamento muito grave. A imagem do Senhor vindo dos céus (acreditava-se que era lá a habitação de Deus) e trazendo das montanhas a desgraça, como “cera derretendo” e “o chão se partindo” é utilizada como sinal de que há algo errado por aqui – em Samaria e Jerusalém. Seria como utilizarmos o desastre de Mariana-MG em 2015 como símbolo da falência corrupta de nossa política, como a sinal da exposição de nossa ferida de corrupção e tudo de doentio e maléfico que ela traz consigo. Continuar lendo

A Bíblia Política: adolescentes, Marx e Miquéias


politica“Religião e política não  se misturam”; é sob essa frase que religiosos pervertidos se aproveitam para usar o Estado, e que políticos honestos (raridade no mundo) se desprezam ou se distanciam de experiências religiosas. Na verdade, é sob frases como esta que não há educação e formação política nas instituições religiosas e nem diálogo inter-religioso nos ambientes “públicos”. É sob “leis informais” como esta que temos o cenário político-religioso brasileiro de hoje: casas legislativas abarrotadas de safados eleitos em cima de igrejas evangélicas e fiéis que se submetem aos desmandos e conselhos de líderes que oferecem gotas de água no meio do deserto. Evitar que a Igreja se torne Estado e o Estado Igreja depende de uma aproximação crítica constante entre religião e política

No romance Hereges, de Leonardo Padura, numa conversa entre seu personagem policial Mario Conde e Elías Kaminsky – filho de um judeu que se refugiara em Cuba um pouco antes da II Guerra fugindo da perseguição nazista -, Elías comenta que lera um autor que dizia que parte da obsessão alemã em destruir aqueles semitas vinha do desejo de ser como judeus: um povo que mesmo sem pátria próprio continua sendo povo, unido, tradicional, orgulhoso e resistente às intemperes. Como trata em um trecho: firmados na “necessidade de se manterem unidos na tradição e na Lei escritas no Livro, única forma de sobrevivência de uma nação sem terra”. Em Hereges, uma das personagens, Daniel Kaminsky (pai de Elías), entra em crise e deseja abandonar sua tradição ao perceber como era difícil, duro e insuportável sofrer tanto simplesmente por ser judeu, por repetir ritos supérfluos e sem grande impacto; mas que parecia incomodar muito de algum modo. Qual o problema em ser judeu? Deixando a política num plano escondido, atrás das cortinas, Leonardo Padura sutilmente esboça como naquilo que temos de peculiar na vida humana é fundamentalmente sustentado pela política…

O fato de ser judeu interferia nas relações públicas, com outros. Religião e Política não se separam. Desde a comida, o modo de comer, realizar trabalhos, economizar dinheiro, a própria relação com o dinheiro e como comércio, o casamento, as disputas sociais, a guerra… Tudo envolvido e alterado pela aparente casca: por realizar ritos superficiais, sem tanta “importância”, particulares. Ser judeu o constituía. Em tudo o que se envolvesse, sua constituição, sua história, tradição, cultura estaria presente. Mesmo que não trouxesse suas crenças ou ritos para o ambiente “público”, suas decisões dependeriam de seu passado, sua bagagem, do que aprendera enquanto judeu. Mais que isso, seria visto pelos outros como judeu e sempre como judeu. Da sina Daniel não escapava. Publicamente era judeu…

“Publicano” era o cobrador de impostos do Império Romano. O público era o imposto. A Res-pública era a “coisa” formada e dependente do público, dos recursos de todas as pessoas. Nas histórias bíblicas do Novo Testamento vemos os publicanos sendo odiados. Pessoas consideradas nojentas, ambiciosas, avarentas, corruptas, ladras que abusavam dos impostos, cobrando uma sobre-taxa para conseguir enviar ao Império  o que era devido e tomar para si um tantinho… Não era necessário ser romano para cobrar impostos; era um cargo, apenas. Na Bíblia, vemos judeus publicanos odiados pelos demais judeus. No ambiente público, os judeus odiavam os publicanos por serem publicanos, mesmo sendo da mesma religião. Mais uma vez religião e política no espaço público altera as relações. Quando Jesus vai à casa de um publicano judeu chamado Zaqueu, os outros ficam enfurecidos. Como pode um judeu visitar um publicano? O fato de Zaqueu ser judeu é apagado quando ele assume o cargo de publicano, pois a religião (teoricamente) proibia a corrupção e a avareza – temos aqui um paradoxo frente à fama e às piadas anti-semitas sobre a relação entre judeus e dinheiro.  Por outro lado, quando perguntam a Jesus se era correto pagar o imposto, o público, à César, ele responde olhando para uma moeda com o rosto do imperador cunhado que “pague-se a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Em outras palavras: devolve a moeda pra ele e fique com o resto…

Política e religião, o público em questão… Não estamos falando de qualquer coisinha… Precisamos encontrar e desvendar esta Bíblia Política para conseguir criticar, conversar, caminhar, constituir um novo espaço. César, por exemplo, era o filho dos deuses, por isso adorado e proclamado como Imperador. O fato de ser Imperador o garantia a filialidade divina e o ser divino era o que legitimava sua função de Imperador. Quando um Jesus da periferia de uma cidadezinha qualquer de uma terra abandonada por Deus chamada Palestina diz que é filho de Deus e que os que estão com ele são seus irmãos, o que está implícito é: somos iguais à César. Não é só a religião que está sendo tocada! É tudo; e como aprendi com um adolescente na comunidade religiosa da qual faço parte: “tudo é política”. Continuar lendo

Do homem ao Estado

LeviatãTive uma intuição certa, mas o caminho que tomei para trabalhá-la foi equivocado. Escrevi um texto em Abril chamado Crise da Democracia? Não! Do Sujeito. A ideia era simples, sem grandes novidades. Mas, ao mesmo tempo, útil. O que tinha colocado nesse texto era que dependendo de como compreendemos “o sujeito”, entenderemos o funcionamento do Estado ou da política. Boa intuição; mas equívoca. Falar do sujeito é manter uma estrutura distante, pouco prática, descolada do cotidiano. Pode ser bom no trabalho de filosofia “estrita” (construção de categorias), mas no conteúdo político, um campo prático, cotidiano, material, não cabe a discussão meramente do sujeito. Estamos falando do homem!

Nossa constituição ou como nos entendemos concretamente, nossa antropologia, é nossa base material para a construção da política como atividade e do político como conteúdo. Claro, não é apenas a “constituição antropológica” que determina a política, exclusivamente. Uma série de campos se misturam, co-determinam, etc. Mas o homem, a base material, é fundamento, o que necessariamente precisamos para desenvolver produções humanas. O processo de conscientização, de saber quem se é e do que somos feitos, que acontece evolutivamente, em determinadas circunstâncias, em nossa espécie, sempre comunitariamente e nas relações e interações sociais, em continuidade com as experiências naturais, momentos intencionais e não-intencionais, vai constituindo a matéria para as produções culturais: nossa política, modo de trabalho, arte, religião, etc. O modo como nos entendemos enquanto seres humanos é base material para a estruturação política.

Base material tem dois sentidos: de conteúdo e físico. De conteúdo são as produções significativas, práticas, do dia-a-dia. Físico é o “bruto”, “natural”, biológico. Aqui nos interessa o material como conteúdo. O fruto ou produto de nossa conscientização – como nos entendemos enquanto humanos – é a constituição antropológica de que estamos tratando. Quando pegamos para ler O Leviatã, de Hobbes, por exemplo, o primeiro capítulo é intitulado: “Do Homem”. É preciso estipular a constituição antropológica material humana para justificar o funcionamento do Estado proposto em seguida, no segundo capítulo: “Do Estado”. Em Rousseau, preciso determinar o homem no estado de Natureza para justificar a origem da desigualdade e, depois, o modo de governo justo. Do mesmo modo Locke, que justificará a propriedade privada a partir do que é naturalmente o homem.

Na Política de Aristóteles, na primeira linha do livro I, está estabelecido que é da natureza de todo homem “agir de modo a obter o que acha ser bom”. Na primeira linha do livro II: “Quem, portanto, considerar os temas visados a partir de sua origem e desenvolvimento […] obterá uma visão mais clara”. Em seguida, explica a constituição natural do homem, da mulher e do escravo. Determina naturalmente a hierarquia entre estes e, a partir dela, vai justificando a organização política. É a partir das experiências concretas, dos conteúdos materiais, que se desenvolve e justifica a política: “A cidade-Estado é uma forma de associação natural, assim como eram as associações primitivas […] é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político […] mais político do que as abelhas ou qualquer outro ser gregário. A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o único animal que tem o dom da palavra”. Ou seja: o homem é naturalmente político, tem o dom da fala e está estabelecida uma hierarquia natural entre homens, mulheres e escravos. É a partir dessas determinações que Aristóteles construirá o Estado. Continuar lendo

“O político”: trecho do projeto

 10568902_770775982960838_6013329346446243723_nO intenso e delicado momento do Brasil – de eleições conturbadas, escândalos de corrupção, manifestações sociais, greves, debates sobre reformas políticas, representação e legitimidade do poder – tem colocado em evidência e recorrentemente trazido à mesa as discussões sobre o político e a política. Se por princípio não se pode determinar que algo “está errado”, pode-se, pelo menos, afirmar que algo está acontecendo. A partir desse ponto, resta responder qual o fundamento disso que está acontecendo – e o lugar onde nos posicionaremos para trabalhar a questão é de suma importância

Em Enrique Dussel encontramos a tese central de que a fundação ontológica da crise do político é a fetichização do poder. Esta fetichização é origem do entendimento do político (conteúdo) e da política (atividade) como dominação e como corrupção. O autor comenta que o “conceito do político supõe primeiramente a descrição ontológica do poder político, conceito que passa inadvertido e que na Modernidade se identificou frequentemente com a dominação”. Esta dominação é fruto de uma corrupção originária: quando os executores do poder (que, como veremos, será explicitado por Dussel com a determinação de potestas) tomam a si mesmos como fonte do poder (que, por sua vez, será, na verdade, a comunidade política determinada como potentia) – o que caracteriza a chamada fetichização. O resultado é: “fetichizado o poder delegado […] toda outra corrupção é possível”.

O desenvolvimento teórico que conduz a essa tese tem como ápice de sua sistematização a obra Política de la Liberación, dividida em três volumes: Historia mundial y crítica, Arquitectónica e Crítica – sendo que o terceiro ainda não foi publicado. O primeiro volume procura compor um novo paradigma histórico para a filosofia política. O segundo, por sua vez, procura descrever ontologicamente o fundamento do poder político. Em seguida, a pretensão é que se critique o que fora construído anteriormente. Por nossa parte, situar-nos-emos no momento metódico de explicitação dos fundamentos do político – desenvolvido no segundo volume da obra.

“É tempo de descolonizar a cabeça” – assim o filósofo latino-americano dá início à primeira aula do curso de filosofia da libertação na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), em 28 de janeiro de 2015. A conhecida e cada vez mais pesquisada crítica à filosofia europeia construída por Dussel, com seu método analético de filosofia, propõe que a exterioridade do sistema hegemônico seja o ponto de partida – tomada de posição que caracteriza a filosofia da libertação. Deste modo, tomando os rumos gerais do método, para compreendermos o que está acontecendo não devemos lançar mão das categorias do próprio sistema – ainda mais na questão do político, pois, como vimos, seu conceito passou inadvertido pela Modernidade enquanto compreendido como dominação. Mas, posicionando-nos para além dele, faz-se possível a explicitação de seu fundamento e sua articulação, abrindo caminho para uma crítica direcionada, efetiva e concreta.

No “Prólogo” ao segundo tomo da Política de la Liberación, Dussel escreve:

“Nesta Arquitectónica, exporemos de maneira abstrata e como introdução ao volume da Crítica de maior complexidade, mais concreta, uma descrição fundamental, ontológica, dos momentos que têm relevância para uma política global, planetária, por sua vez observada de modo especial a partir da periferia, do Sul, e particularmente desde a América Latina. Será toda uma implementação do poder político, que irá ocupando o campo político até chegar ao final […] havendo dado conta suficientemente, levando em consideração os momentos necessários, de uma “ordem do político vigente” , anterior, de maneira abstrata e sem contradições ainda; sem conflitos, metodicamente postergados para a seção seguinte da Crítica.”

Seu propósito, portanto, neste momento arquitetônico, é descrever os fundamentos do político de maneira complexa, necessária, mínima e suficiente – momento abstrato de descrição ontológica. A disposição das categorias que constituem o político permitirá a compreensão de sua crise: sua corrupção originária e o entendimento fetichizado do poder como dominação. Além disso, no passo metodológico seguinte, a crítica concreta da libertação encontra caminho aberto. É o processo de “ascensão do abstrato ao concreto” – expressão que Dussel empresta de Karl Marx.

Interpretando criticamente os Grundrisse, Dussel encontra o seguinte quadro: “Marx pode ver com novos olhos, pode criticar o próprio ser do capitalismo […] a partir de uma exterioridade prática que lhe exige explicitar para os oprimidos uma teoria que explique aos trabalhadores o fundamento de sua alienação”. Isso significa que, para Dussel, Marx pôde construir um novo sistema de categorias que permitia explicitar o fundamento escondido porque tomou posição de exterioridade ao sistema capitalista – posição dos trabalhadores, alienados. Tendo-o feito, possibilitava a crítica ao próprio sistema.

Do mesmo modo, o filósofo latino-americano estabelece que, guardadas as proporções e a analogia epistêmica necessária, faça-se o mesmo quanto à filosofia política. Então, como citado, é necessário nos posicionarmos a partir da periferia – a América Latina, o Sul como exterioridade, como possibilidade crítica ao poder como dominação e à corrupção originária. Deste lugar de exterioridade, devemos observar a “ordem do político vigente”, descrevendo ontologicamente suas determinações, suas categorias articuladas, seu fundamento. Estas categorias e determinações colocam em questão a origem ontológica do político e permitem melhor compreensão do processo de fetichização do poder político.

Dussel também recorda que Marx descobriu a “comunidade vivente” como categoria fundamental – a via de acesso à distinção entre “trabalho vivo” e “trabalho objetivado”. Mantendo pedagogicamente o processo de analogia, sempre levando em conta as diferenças dos âmbitos da economia e da politica, afirma:

“Assim como a crítica da economia política de Marx partia da “comunidade de viventes” dos que trabalham, e onde cada trabalhador era considerado como “trabalho vivo” […] da mesma maneira a crítica da filosofia política da libertação parte de uma categoria fundamental que organiza todo o sistema das categorias restantes. Esta categoria é a do poder político.”

Deste modo, Dussel nos indica que, no desenvolvimento da política da libertação, a categoria fundamental é o poder político. As demais categorias que compuserem o sistema serão dispostas em torno desta centralidade. Continuar lendo

Concreto, material, teoria, prática… Diferenças necessárias

grafite arte urbana QBRK (11)[8]Utilizamos uma série de termos para organizar nossos discursos, projetos, propostas e justificar nossas ações. O significado destes termos precisa sempre estar bem determinado: saber suas posições, oposições e diferenças é fundamental para delimitarmos nossas justificativas: nossos sistemas significativos de justificação. Muitas vezes lemos a oposição entre “teoria e prática”, mas sem sabermos as determinações de cada termo. Trabalhamos sem refletir como dada a diferença entre “material” e… Qual o oposto de material? Aliás, qual a diferença entre “material” e “concreto”? É comum ver estes termos como sinônimos e confusos. Por exemplo: soa estranho uma “teoria prática”? E uma teoria “concreta”? Uma abstração “material”? Bem, é preciso organizar…

Aqui entra boa parte do trabalho filosófico: produzir e organizar sistemas significativos de justificação. Me arriscando nesse exercício, seguem algumas diferenças e oposições que creio serem relevantes para a organização de nossos projetos, discursos e ações. Ao final do texto, cito as fontes de onde tiramos o seguinte quadro:

Prático x Poiético

Normalmente trabalha-se a diferença entre “teoria e prática”. Mas, após ter contato com Enrique Dussel, ver suas interpretações e indicações, encontrei uma proposta muito interessante: prático em oposição ao poiético. Para Dussel, lendo Aristóteles, prática é a produção de alguma coisa que tem como direção final outra pessoa. É o trabalho relacional. Poiético, por sua vez, é o trabalho pelo trabalho, a produção pela produção. Quando um sapateiro produz para entregar o sapato para alguém determinado, é um exercício prático. Quando um trabalhador de uma fábrica de sapatos produz sapato por manutenção da produção, é poiético. Tal diferença é importante porque rompe com uma limitação: a impossibilidade comum de se desenvolver uma “teoria prática”. A produção teórica que tem como direcionamento uma “pessoa determinada”, é, sim, prática. Já a produção teórica pela produção teórica, voltada ao próprio exercício produtivo, é “teoria poiética”.

Teoria x Empiria

Teoria é distinta de prática e poiética, diferente e oposta à empiria. Teoria é o trabalho “contemplativo”: a produção reflexa de organização de esquemas, sistemas, discursos, modelos… É a representação esquemática de determinada situação que possibilita uma experimentação sem consequências radicais e imediatas. Oposto à empiria: que é a experiência radical, determinada, concreta que altera imediatamente e sem possibilidade de regressão e digressão a situação experienciada. Não é exercício representativo, mas direto, imediato.

Material x Sistêmico

Material é o “núcleo duro” trabalhado: seja poieticamente, praticamente, em exercício teórico ou empírico, é aquilo que de modo bruto, em sentido especial “internamente indissociável”, que abre possibilidade para um ponto de partida seguro para o trabalho, a produção, o exercício. Então seja um tanto de barro na mão de um artesão, seja madeira na mão do marceneiro ou o “conceito geral” em Marx, é este núcleo o “material”. Marx consegue fundar seu materialismo histórico e seu materialismo dialético ao estipular/determinar o “homem trabalhador em geral”: qual o núcleo histórico que constitui qualquer trabalho efetivamente? A resposta, a constituição do “trabalho em geral”, possibilitou a entrada material na história do homem. O contrário, tradicionalmente, sempre foi tomado como “o ideal” ou “o espiritual”. Entretanto, depois de revoluções científicas, tecnológicas, etc, estes termos perderam certo significado. Neste sentido, tomando certo cuidado na interpretação de Bourdieu, o termo “sistema” explica melhor: já não é um núcleo duro a ser trabalhado, mas as relações institucionais, pessoais, estruturais… Enfim, as determinações relacionais nas quais certo objeto está imerso. Não seria mais o “trabalho em geral”, seguindo o exemplo de Marx, mas o trabalho no “sistema capitalista”; as regras do jogo e como se comportam suas “peças”. Estas regras não são “materiais” como núcleo bruto, mas são compreendidas e compreensíveis na relação: nas situações, ações e efeitos que surgem entre os “objetos”, os “materiais”, os “atores” do sistema e no sistema. Continuar lendo