2016: Amanhã não será maior, nem melhor

wallNão sejamos pessimistas. Apesar do título, esse não é dos textos catastróficos e depressivos. Não! Na verdade esse deve ser o primeiro texto efetivamente esperançoso escrito nesse blog. Sem dúvida é um texto desiludido. Não é ufanista e nem animador (no pior sentido que essa palavra possa ter). Estamos longe de propor um efeito “motivacional”. Seria tosco, leviano, pecaminoso, ofensivo e irresponsável prometer um dia de sol no meio de um dilúvio. Esse é um texto de esperança. Não qualquer esperança. Esperança de verdade

No prefácio ao terceiro volume da sequência de Porque pensar não é pecado, escrito no final de 2013, mencionei o grito que vez por outra soltávamos nas manifestações de julho daquele ano: “amanhã será maior, amanhã será melhor”. Na ocasião comentei que era óbvio que nós, manifestantes, sabíamos que não seria melhor e nem maior necessariamente. Mas, de qualquer modo, nos agarrávamos ao chavão como grito de esperança. Quer dizer, achávamos que aquilo era esperança. Não era. Era uma crença – um “torcer pra dar certo”. Um ânimo sonhador e valente, mas ainda muito imaturo e infantil. Poderia ser, talvez um grito de “desejo”, mas não de esperança. Esperança de verdade não ousa gritar sobre o amanhã. Esperança de verdade não fala sobre a passagem do “tempo” cronológico, mas sobre um lugar…

Nem maior e nem melhor. O grito era certo; mas não expressava esperança, apenas nosso desejo. E cumpriu com seu papel: saciado o desejo, findou todo o movimento. Se fosse esperança de verdade, não morreria. Esperança não é apenas a “última que morre”; ela nasce da experiência com a morte, ela nasce junto ou talvez até da morte. Esperança não é um acreditar no progresso e melhoria do amanhã. É uma qualidade de nosso trabalho. Esperança é trabalhar ou projetar com os materiais disponíveis e a partir daquilo que já se foi, sobre o chão que está sob nossos pés, nossa história, nosso castelo. É esperançoso o vivente que constrói uma nova casa apesar de ter visto aquela em que morava ser destruída por um incêndio. É esperançoso quem tem filhos apesar de ter visto a morte dos próprios pais. É esperançoso o desejo de produzir a vida mesmo sabendo como é o trabalho de parto.

Comblin dizia que esperança não é sensação ou sentimento, mas qualidade da ação. Esperança não é o frio na barriga por acreditar no melhor ou maior de amanhã. Isso é desejo, ânimo, expectativa, ansiedade até. Pode ser, sem maldade ou sentido negativo, uma ilusão. Esperança é qualidade de nossa ação: o modo de realizar projetos. Mais que isso: o que é transmitido àquilo que produzimos com nosso trabalho cotidiano. Somos trabalhadores. Trabalhar é gastar energia para lutar contra a perda total de energia: se matar para não morrer. O trabalho pode ou não ser esperançoso. O que determina não é a sensação enquanto se trabalha; mas a consciência do lugar em que se está trabalhando: os limites, os materiais disponíveis, a história do trabalho passado. Esperança depende de um processo de conscientização.

Não é o grito! É o processo de conscientização. Esperança exige maturidade – até um pouco de rudeza, de ser casca grossa. Conscientização não é saber o que está acontecendo, estar ciente do mundo. Conscientização é, como Paulo Freire aprendeu-ensinou, um modo de agir no mundo: “não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão […] conscientização é um compromisso histórico: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece”. Esse é o processo de conscientização que possibilita a verdadeira esperança: permite que o trabalho seja ou não esperançoso, produtor de esperança. Continuar lendo

Como assim esperança?

oprimido1Inacreditavelmente hoje é 21 de dezembro. O Natal é nessa semana, já, e mal se vê luzes e o clima de festa. Nem as propagandas de televisão ou na internet entraram ou forçaram o “espírito”. Aliás, essa é a palavra: o Espírito que paira por aqui não é natalino. Nas conversas com amigos, colegas e gente no trem, deu para perceber uma coisa: há um sentimento no nosso meio, um ar, uma atmosfera diferente de todos os natais que já vivemos. Esse ano não estamos nem em tempo iluminado e nem em tempo de ilusão. O Espírito é outro: desalegria

Juan Arias inventou esse termo – desalegria – em sua coluna no El País: Como ele explica, não é um sentimento de tristeza ou infelicidade; é a sensação de desamparo institucional, de falta de vontade e desilusão que mina a esperança. Acho que é isso que estamos vivendo, só que piorado com a impressão de que 2014 não acabou; só colou em 2015 e nos empurrou pra baixo. Chegar no fim de mais um “ano eterno” lembra a gente que o calendário é só uma convenção, que a virada de 31 de dezembro pra 1 de janeiro não é como a virada de um livro: a cada folha mais perto do fim desejado. Lembra que não tem nada de mágico e que a vida não segue “em frente”, mas gira em torno do Sol, sola no meio de um nada sem medida.

As alegrias, planos e sonhos que temos dependem de certa segurança; de certa estabilidade (mesmo que pendurada numa crença simples e desconexa). Sentir-se desamparado por instituições é o encontro com a falta de segurança, o “zero” de estabilidade. É desalegria. Quando falamos de instituições, falamos de todas: família, divisão de trabalho, casa, escola, igreja, Estado, códigos legais, convenções, parcerias, tradições culturais, etc. Até futebol entra na conta. Quando nada disso “funciona”, quando não garante nem uma gota de segurança e estabilidade, a desalegria está garantida. Em quem confiar? Não cremos mais em ilustres e nem nos meios que deveriam garantir as possibilidades de nossa vida. Chega o Natal; mais um traço cultural que, no fim do ano, não inspira muita coisa. O Espírito não é de esperança. Ela está minada.

Eliane Brum escreveu em sua coluna, também do El País, sobre a esperança. Texto sensacional: Em defesa da desesperança. É, a esperança está minada, este é o Espírito do nosso tempo, hoje. E daí? Com muita ousadia a Eliane pergunta: “e daí que estou sem esperança?”. Talvez seja exatamente esse o momento de amadurecermos, de criarmos raízes na terra, não nas nuvens. Talvez isso ajude, inclusive, a entendermos o que é que é essa tal de esperança que faz tempo que não vemos. No texto, a jornalista escreve: “Talvez tenha chegado a hora de superar a esperança […] Quero afirmar aqui que, para enfrentar o desafio de construir um projeto político para o país, a esperança não é tão importante. Acho mesmo que é supervalorizada. Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. O que vai costurar os rasgos do Brasil não é a esperança, mas a nossa capacidade de enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder […] Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.” Continuar lendo

Engajamento político na religião: uma porta estreita

futuroeeAssistindo um programa esportivo que discutia a CPI da CBF, ouvi um comentarista dizendo que o problema era a “política ter entrado no futebol”. Dá para entender o que ele quer dizer: a corrupção estraga os processos e corrói as instituições. Mas o problema é que política não é o mesmo que corrupção. Está implícita uma compreensão de política como algo ruim, mal, corrupto e dominador. Se entendemos que Política não é isso, conseguimos perceber que o problema não é a política, mas a corrupção, a atividade corrompida na política

Num grupo de estudo bíblico em que atuo com adolescentes de uma comunidade religiosa, um dos meninos participantes disse, a partir da leitura do livro de Miquéias, que “tudo é Política”. Discutimos esse assunto e nos questionamos o que isso significava. Miquéias fazia ali uma denúncia política e religiosa. Então ficou a pergunta: política e religião juntas? E o consenso como resposta foi: sim; se religião é uma atividade humana, está fundamentada numa relação Política.

Nas discussões, outro menino citou Aristóteles, afirmando que “somos animais políticos”. Nas conversas, perguntei o que era política, e muitas coisas surgiram: organização das relações, ordenamento para realizar fins, estrutura de hierarquia, exercício do poder. Um dos exemplos que surgiu da molecada foi: “se vamos comer pão, não comemos só o pão: há o processo de produção do pão, o caminho até chegar em casa, a divisão dele em casa e se teremos casa para poder comer lá o pão”.

Não sei se eles sabem, mas essa é a constatação econômico-política que fez Marx analisar o capitalismo: processos de produção, distribuição, troca e consumo que se co-determinam mutuamente. A parte de “distribuição” e “troca” são relações políticas – enquanto que produção e consumo, econômicas. O que está posto é que há nas relações humanas, sempre, fundamento político – e não dá para se livrar disso!  Quando acontece, é uma “mentira” ou ilusão.

Por alguma razão, é assustador dizer, por exemplo, que política é intrínseco à religião, que não há como separar as duas coisas. Na verdade, dá pra saber a razão: o esforço por separar Estado de Igreja dentro de um projeto “moderno”. Mas separar Igreja e Estado é o trabalho de reorganizar instituições. Separaram-se duas instituições. Porém, política e religião não são instituições; são conteúdos! Talvez usar o termo “religiosidade” ajudasse melhor a entender o assunto; mas não para nosso fim (já já entenderemos o porque). Igreja e Estado são instituições; religião e Política são conteúdos. Ao transformar as duas instituições a partir de um novo projeto é uma atividade precisa, mas não se pode confundi-las com seus conteúdos peculiares. A Política continua sendo fundamental para a religião; a religião continua sendo caminho do exercício político.

“Tudo é política”, disse o adolescente. Religião também é dependente de relações Políticas. Uma Igreja, enquanto instituição, tem um componente estrutural estritamente político. Uma instituição (seja Estado, Igreja ou agricultura) é um instrumento, um meio, criado para realizar o desejo-de-viver de uma comunidade. Poder é esse desejo-de-vida, vontade, gana por viver: por produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana.  A necessidade de alimentar uma cidade funda a instituição agricultura. A necessidade de se reproduzir enquanto espécie fundamenta regras familiares, incesto, etc. A necessidade de manter uma tradição ou crenças funda uma religião. A de transmitir conhecimentos (pedagogia) funda a escola. A necessidade de organizar/efetivar/concretizar as relações sociais, funda, por exemplo, o Estado. Instituição é o aparato que sustenta e possibilita a realização do desejo-de-viver de uma comunidade em diversos campos. No campo religioso é uma Igreja, por exemplo; enquanto que no campo político é o Estado, por exemplo.

Toda essa volta é para explicar que Política é atividade fundamental e constituinte da religião – assim como o inverso, mas este tema fica para outro texto. Nessas é que Marx afirma que a crítica teológica é a primeira crítica política. Schleimacher, ao falar sobre religião, não trabalha a partir dos dogmas ou crenças, mas como prática social: dependente de organização e vida comunitária ativa. É fundamental entender isso: a prática religiosa, a religião, que instaura uma instituição chamada Igreja, depende de estrutura e interações políticas. O engajamento político e a formação política não se resumem ao Estado, mas às experiências institucionais que sujeitos humanos tem.

As Ocupações nas Escolas de São Paulo expuseram este caráter: adolescentes se envolveram politicamente com a escola, interferindo inclusive na decisão do Estado. A preocupação é com a escola, instituição pedagógica local. Mas o exercício é político, de conteúdo político: participação ativa na construção e transformação da escola. Esses meninos e meninas estão num processo de formação política, que envolve a escola, a família, o trabalho, a igreja…

Está-se vivendo e produzindo Política. O problema é que quando este tema toca a religião, as instituições religiosas, imediatamente tanto religiosos quanto não-religiosos “surtam”: “não se deve misturar as coisas”, “instituição é sempre corrompida”, “tradicionalmente somos assim”, e sei lá mais o que. Sejam os “progressistas” ou os “conservadores” no âmbito religioso (não em referências aos procedimentos do Estado), os “modernos” ou os “tradicionais”, a condenação ao engajamento político é imediata. Lembre: não estou me referindo à discussão ou participação no Estado; engajamento político, aqui, é quanto ao conteúdo: atuar politicamente na estrutura institucional das igrejas, nos fundamentos religiosos propriamente ditos. Continuar lendo

O que está acontecendo?

Ocupações nas escolas, atividade conturbada na Câmara dos Deputados, CPI da CBF no Senado e manifestações de atletas, manifestações (estranhas) divulgando o impedimento de mandato da Presidenta, manifestações contra o processo de impedimento, cassação de mandatos, investigação sobre políticos importantes, conversas de facebook, notícias de jornal, petições, discussões, confusões… O que está acontecendo?

A atividade Política está superaquecida – não só no Brasil. Antes daria para nos contentarmos com a justificativa de que “estamos cansados de políticos”. Mas quando esta atividade extrapola a relação de “representação” tal como está posta e vai para escolas, para organizações sociais, empresas e até pra o futebol, não dá para dizer que o problema é simplesmente cansaço com “políticos”. É uma questão mais profunda, mais dura, estrutural: surge a necessidade de se mudar/transformar o modo como funcionam politicamente nossas instituições. É um problema de “projeto”: não se tem cumprido praticamente nem produtivamente com o necessário. Não se tem cumprido teoricamente e nem empiricamente com o necessário. Não se tem cumprido materialmente e nem sistemicamente. Não se tem cumprido concretamente e nem abstratamente no atendimento às necessidades e desejo-de-viver do povo.

Claro, tenho respirado Política – minha pesquisa em filosofia tem sido a formação, a função e a corrupção das instituições. Parecia que o tema se restringiria ao Estado e etc. Mas quando vemos adolescentes exigindo autonomia sobre a escola e participação nas decisões enquanto afetados pelo projeto de outras instituições, vemos que Política é mais profundo do que o que engravatados decidem no Congresso. Quando há uma CPI para investigar a Confederação Brasileira de Futebol e ex-atletas e instituições como o Bom Senso Futebol Clube que cria uma página chamada #OcupaCBF, em que o principal motivo é: “Faz-se urgente um novo sistema eleitoral na CBF. O atual modelo impede que as eleições sejam verdadeiramente democráticas […] É preciso facilitar a entrada de uma oposição realmente independente dentro da entidade” – está-se criticando o funcionamento político das relações, não de uma ou outra instituição.

Está em crise a capacidade de certo projeto de atender e corresponder a necessidade do povo, que é a fonte do poder dessas instituições: é por ele, por causa dele e para ele que as instituições são criadas e mantidas. As alterações necessárias fundamentais são políticas. Nas escolas, por exemplo, a ocupação mobiliza um modo de se relacionar com a própria escola e um engajamento em seu processo. O Bom Senso em suas revindicações tem exigido a participação popular nas decisões sobre o futebol brasileiro. É a necessidade dos afetados – que são ao mesmo tempo os criadores e mantenedores das instituições – de decidirem e participarem direta e ativamente da organização e do desenvolvimento do projeto.

Enrique Dussel mostra em sua Política que instituições são necessárias: ferramentas criadas para produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana, da comunidade, do povo. O povo é a fonte do poder, mas este poder necessita de uma estrutura política que o sustente, que possibilite que esse poder se reverta efetivamente e concretamente em desenvolvimento da vida. Nessa estrutura temos duas questões fundamentais para serem discutidas: o que é poder e o que é povo.

Poder normalmente é entendido como dominação e violência: controlar e oprimir para mandar. Isso, como Dussel mostra, não é poder: é fetichização do poder, é CORRUPÇÃO do poder. Poder, primeira e originalmente, é o desejo-de-viver de uma comunidade política. A necessidade de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana requer a criação de meios (instrumentos, ferramentas, modos de se relacionar) para sua satisfação. Para se alimentar uma pequena cidade, foi necessário desenvolver uma instituição chamada agricultura. Para possibilitar a reprodução de nossa espécie em seus contextos, foi necessária a instituição família. Para organizar uma cidade foi necessário criar instituições como o Estado. Essa relação de necessidade e criação de uma instituição não é fundamentalmente negativa, opressora, dominadora. Ela pode vir a ser. Mas quando e se isso acontece, é um processo de corrupção que precisa ser combatido. Poder, assim, é desejo-de-viver, é a vontade e necessidade da comunidade de continuar vivendo e existindo. É afirmação positiva e forte da vida!

Se entendemos poder como algo negativo, ruim, “odiamos” política. Não a Política, verdadeira e atuante sempre, mas a atividade corrompida.  Por isso é preciso resgatar o “poder fundamental”. O que as ocupações nas escolas, os movimentos sociais, revindicações e etc., tem apresentado é o resgate desta experiência: o poder tem como sede a vida da comunidade política, e por isso é a ela que as instituições devem se reportar. Instituições são instrumentos para possibilitar a vida da comunidade, quando não mais o fazem, precisam ser transformadas: e este processo de crítica e transformação é um processo político – talvez o político por excelência! Continuar lendo

Cansei de corrupção

revolution_wallpaper___by_jeevayA gente pensa em corrupção a partir de problemas pontuais: roubalheira ou politicagem (de engravatados distantes da gente); colar em prova ou “atalhos” (mais próximos do nosso dia-a-dia). E o combate à corrupção segue na tentativa de repreender essas atitudes isoladas, sem trabalhar no fundamento delas. Cansei de corrupção! Não das “aparentes”, mas das profundas. Instituições e modos de organizar nossa vida estão corrompidas em sua base: desde o princípio, no fundamento

Talvez esteja incomodado com este tema por dois motivos: 1. minha pesquisa no mestrado é mostrar a formação das instituições e a origem de sua corrupção; 2. vivo crises institucionais por ver essa corrupção na minha frente todo dia e ter que me segurar para não me tornar um incendiário. De qualquer modo, este texto está carregado de desabafo, mas tentarei me conter e explicar que instituições são NECESSÁRIAS para a vida; mas se elas estão corrompidas, precisam ser criticadas desde seu fundamento, senão apenas reproduzirão em suas ações processos corrompidos. Política não é corrupta por natureza; instituições não são corruptas por natureza. Nem são “mau necessário”. Elas podem se corromper – assim como podem se transformar!

Na abertura de um livreto chamado “20 teses de política”, Enrique Dussel escreve: “A política [como conteúdo] se corrompe como totalidade quando sua função essencial fica distorcida, destruída em sua origem […] A corrupção originária da política – que denominaremos fetichismo do poder – consiste em que o ator político crê poder afirmar sua própria subjetividade ou instituição na qual cumpre uma função […] como fonte do poder político […] Porquê? Porque todo exercício do poder de toda instituição (desde o presidente até a polícia) ou função política, tem como primeira e última referência o poder da comunidade política [o povo]”. Ou seja: quando uma instituição ou quando um governante toma a si mesmo como referência e manda, como se o poder fosse dele e dependesse dele sem nenhuma conexão com o povo, há corrupção.

O problema é mais profundo: de onde vem o poder? Quem é a fonte do poder? A resposta é “o povo”, que entrega sua confiança (suas vidas!) nas mãos de uma instituição ou de líderes – na esperança de que eles cumpram com algo fundamental: possibilitem a produção, manutenção e desenvolvimento da vida desse povo. Dussel, assim, adverte: “a política consiste em ter ‘a cada manhã ouvidos de discípulo’, para que os que ‘mandem, mandem obedecendo”. Não que mandem mandando! Quem manda deve mandar obedecendo: ouvindo e atendendo ao povo. A medida que a instituição ou os executores dessa instituição se afastam do povo, acostumam-se em decidir sem perguntar, em fazer sem responder, em nunca prestar contas ou ouvir os rumos, desejos, anseios e necessidades da vida do povo.

Bem vindos às ocupações das escolas em São Paulo! No meio das minhas crises – com várias instituições – e da minha pesquisa, ocorrem as ocupações. Vi na minha frente acontecendo um movimento político a partir do povo, clamando para que os que mandam, mandassem obedecendo. O que o Governador Geraldo Alckmin e sua equipe fizeram foi realizar o de sempre: ações políticas e decisões que passam por cima do povo. Quando em entrevista ele disse que “tem política misturada no meio dessas manifestações”, não foi de sacanagem: na cabeça dele (e dessa geração política) política é só a ação do Estado ou de instituições. “Povo não age politicamente”, ou não deve agir. É doentio! Está corrompido desde as bases. A corrupção de Geraldo (ou de qualquer político) não parte do uso da máquina a seu favor, mas antes: de entender que política é o uso da máquina, que o Estado é a sede e fonte do poder, não o povo. Continuar lendo

Guerra: quando a Política acaba

BAB1971021W00011/07Esta é uma crítica teológico-política. Marx já lembrou a gente que a crítica teológica é a primeira crítica política. Também podemos inverter: a crítica política é a primeira crítica teológica. Dizer que é uma crítica teológica não significa que falaremos de Deus. Significa que falaremos de “crenças”: de estruturas significativas que não tem outro lugar a não ser a experiência da relação humana, do “entre nós”. Dizer que é uma crítica política não significa que falaremos da guerra. A guerra começa quando a política cai. Significa que falaremos de todos os caminhos para impedir a guerra. Se a guerra começa, seja ela santa ou não, é porque a política e a teologia foram deixadas de lado: se tornaram ferramentas nas mãos de arquitetos sem escrúpulos

Aqui começa a guerra: quando o “entre nós” ficou entupido de lixo. Quando o vazio que há entre dois sujeitos se encheu de sedimentos. Quando não há mais espaço para a vida; quando não há mais tempo relacional. Quando um ou outro suprimem o que há de mais importante: o entre. Aquela abertura que era para ser “vazia” de coisas e cheia de vida cai; deixa de ser fundamento para a produção de instituições, decisões, da própria vida, e passa a ser um “meio”. Um ou outro se toma a si mesmo como fundamento, e o “entre” é suprimido para dar lugar à guerra. O vazio é preenchido por canhões.

O buraco do tamanho de Deus que Agostinho dizia ter no coração não ficava dentro dele. Esse buraco, esse coração, esse vazio do tamanho de Deus, é o espaço entre um e Outro – entre o Eu e o Próximo. A referência, o ponto de partida, é este sem lugar que há no “meio do caminho”. Sem lugar tem uma palavra específica: utopia. É o espaço verdadeiramente público: não um espaço social, que pode ser ocupado, desocupado, invadido, construído, destruído, possuído… É público: não pode ter dono. A experiência ética e a prática política são os campos que nos permitem tentar manter esse “espaço”. São possibilidades para (nas palavras de Dussel) a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana.

Vida humana tem um caráter peculiar: é a única que permite essa experiência entre sujeitos, sustentada no “nada” – nada além do nós mesmos e nossas crenças, significados e justificativas. Sem esse espaço do “nada”, tudo pode ser tocado, possuído. Na disputa, a Guerra se torna iminente! Não há mais o “sagrado”. Porque? Porque tudo pode ter dono, até o espaço entre um e Outro. Não há mais Próximo, porque este é substituído pelo “Meu”. Próximo é aquele que sempre está perto, mas nunca se identifica comigo ou conosco. Próximo é o que está com a gente, mas ao mesmo tempo tem um espaço de distância. Não é um “nós” pleno; é um próximo. O “nós” pleno, sem espaço, é justificativa última da Guerra. Ele pode vir travestido de “eu”, também – mas não tem tanta força. O “nós” não-pleno, ou melhor, o “nós” simplesmente é o verdadeiro: aquele que se une, mas mantém a separação entre um e Outro. Respeita a autonomia. Possibilita a “liberdade”.

Liberdade, de acordo com Enrique Dussel, é a possibilidade de manejar o máximo possível de mediações que possibilitem a vida – a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana. Não a minha ou a “nossa plena”; a vida humana, simplesmente. A vida humana, e “nada para além”. O campo que produz essas “mediações” é a Política. A formação de instituições que realizem e permitam e preservação do “espaço público”, o entre nós, depende de uma ação e construção Política. Política não é Guerra: Política é a resistência àquilo que procura dominar o “fundamento”, o vazio, o nada entre nós, o nada que origina o modo de viver propriamente humano. Continuar lendo

Expressões: uma crônica

ExpressõesADVERTÊNCIA: este texto é escrito para um grupo de adolescentes de uma comunidade religiosa evangélica específica da zona sul de São Paulo. Quanto mais distante deste lugar, talvez tudo isso faça menos sentido. É bom lembrar que distância não é só uma questão de  tempo e espaço…

Sábado, 28 de novembro de 2015.

 

Com o clássico atraso brasileiro, as luzes se apagaram. A capela de uma comunidade religiosa evangélica da zona sul de São Paulo ficou sombria. No fundo, a silhueta de uma cidade escura toda pixada. Se destacava um “EXPRESSÕES” bem no meio de tudo. O tema “Indiferança: a indiferança mata” estava saltava na tela. Vimos entrar algumas pessoas – pelo menos a sombra delas. Não eram muito altas, andavam e se moviam a seu próprio modo. Mas firmes, seguras, imponentes. Adolescentes. Todos adolescentes.

Um violão swingado e agressivo puxa o som e uma bateria entra pesado. Numa versão própria e toda estilizada, uma pancada bateu nos ouvidos e no peito de nós, que assistíamos: “Não existe amor em SP”! Não importava mais se o som estava impecável ou se a técnica era de outro mundo. A Verdade veio com força através da boca, das mãos e dos corpos de uma molecada pulsante. A primeira música tocada por um grupo de adolescentes de uma igreja evangélica fechou com barulhentos: “Não precisa morrer pra ver Deus” e “Aqui, ninguém vai pro céu”… Com cara fechada, ar pesado, meninos e meninas cheios de vida verdadeiramente expressaram a vida indiferente em SP. A mensagem batia forte não pela técnica, pelo som, notas, sei lá. Batia forte porque era Verdade! Não uma verdade demonstrada. Era verdade vivida.

Um rapaz, adolescente, deixou a voz em transição soar como um trovão. Foi voz de Deus, foi voz de profeta. Os olhos dele se fixavam em todos ao mesmo tempo. As mãos se moviam de maneira firme, direta. Não se fazia uma acusação qualquer; era uma denúncia! Ali já não fazia diferença o tamanho ou a idade de quem estava falando. A voz não temia, mas meu ouvido tremia. Um texto escrito por outro menino inspirado pelo Espírito invadiu o ambiente escuro e chocou a capela assim:

“Mendigo de rua, Cidade nua e crua! Tudo se passa despercebido nessa sociedade imunda. A ganância de nossos almirantes vêm primeiro Pena não ter como fugir e pedir a Moisés Abrir o mar vermelho. Vejo um garoto ser violentado A cor negra fazendo-o ser Novamente massacrado… Esse espírito hitlerista já não desce na garganta Torço para o negro vencer essa ignorância. Na caminhada vejo fumaças É a poluição gerando sinal de desgraça… O Congresso Nacional vive de trapaças, esse é um país onde a indiferença mata…”

Um salmo bíblico escrito ou uma profecia expressada por um adolescente da zona sul de São Paulo. Era um Amós fazendo a Terra tremer; um Ageu denunciando a injustiça. Verdade! O mundo não ficou sabendo disso. Nós ficamos. Todos nós. Nós trememos. Nossa responsabilidade de “adultos” foi convocada por adolescentes.

De música em música a mensagem ficava mais forte, a cidade mais tensionada. “Alguém transforme este lugar!”; “Se o povo não conhece a própria história, está condenado a repeti-la! “; “Até quando as mãos estarão tão fechadas? Até quando estarão nossos braços cruzados?”; “Senhor, piedade! Piedade dessa gente careta”; “Em nome da Justiça!”. O que mata é a indiferença.

Novamente a voz surgia em cena, declamava uma mensagem: “A indiferença mata”.  A gente não percebe. Ele entrou, fez sinais em libras junto a outra adolescente que traduziu tudo o que aconteceu para os surdos ali presentes, e só percebemos que ele tinha feito isso quando ele parou. Não percebemos o que está na nossa frente! A indiferença mata:

“Quem disse que é o ódio que mata? Fome, dor, frio, morte Você olha e finge que não vê E assim você vai (sobre) vivendo Sem realmente viver”.

Um provérbio que poderia estar no Eclesiastes escrito por uma adolescente. Sabedoria, serenidade, seriedade, denúncia, Verdade. Era o Espírito soprando e encarnando naquelas palavras, naquelas músicas, naquele teatro… O teatro! Chorei, muito…

Uma pantomima regada por uma música fúnebre, tensa, forte. Uma mulher-mãe dando um trato em casa, uma moça-filha chegando em casa depois de estar com as amigas, um pai chegando do trabalho. Cada um chega e fica em seu canto, faz de seu modo. Uma pausa para a selfie com sorriso (e a música fúnebre tocando ao fundo) e em segundos uma confusão total: uma discussão “muda”, movimentos bruscos e o homem levanta a mão para acertar um tapa na cara de sua mulher com a filha desesperada ao lado. O tapa para no ar, a cena congela, a música pára. A menina vira para nós, vai baixando a cabeça até cair de joelhos no chão clamando: “A gente nasce sozinho. Cresce sozinho. Vive sozinho. E morre sozinho”.  Continuar lendo