Uma verdade não é uma verdade sozinha. Ela tem corpo sentido e “testemunho” através da vida de quem a profere. O “eu sou a verdade” de Cristo é uma afirmação materialmente mais dura do que parece: eu vivo o que falo e falo o que estamos vivendo. O logos que se faz carne e habita requer que quem o siga seja testemunho vivo, ou melhor, mártir: encarne a mensagem. O crivo de verdade não é a palavra escrita, mas a Palavra Viva, que se renova a cada manhã enquanto a vivos a vivem. “O trabalho liberta” até é uma expressão válida; mas como lema cunhado acima dos portões de Auschwitz, torna-se mentira assassina. Dizer que “profecia é denúncia contra os poderosos” é verdade na boca de Dom Pedro Casaldáliga, mas tem sido falsidade peçonhenta nos textos de líderes e teólogos evangélicos
Textos tem sido escritos, mensagens pregadas, desculpas armadas e vídeos produzidos por lideranças e “estudiosos” evangélicos afirmando que “profecia é denúncia aos poderosos”, com uma ressalva importante: os poderosos são necessária e exclusivamente os “reis”. Os sacerdotes, os ricos e líderes curiosamente não entram na conta. Pior que isso, é ver que esse discurso está sendo apropriado para dizer que é função da igreja ser “denunciadora”, e por isso deve se afastar das instituições políticas: assim é capaz de “denunciar”. Denunciar quem, especificamente? Quem estiver no Governo. A partir de uma análise ou consciência politica? Não. Apenas seja contra as instituições políticas: “elas são sujas por natureza”. A função de denúncia da Igreja está sendo utilizada não para politizá-la, mas para desarticular seus membros: o efeito gerado é o afastamento das decisões políticas, o distanciamento “do que está acontecendo lá fora”, no mundo. Na verdade, esse discurso não é para durar para sempre: é oportunismo religioso para denunciar única e exclusivamente o governo que está aí agora. Por quase 100 anos de evangelicalismo no Brasil, pela primeira vez curiosa e coincidentemente profecia está sendo “entendida” e apresentada como “denúncia”.
Além de hipocrisia e apropriação indevida, é desonestidade e violência à história de santos que lutaram verdadeiramente para propor e defender a profecia como e enquanto denúncia contra os poderosos. A verdade é que das décadas de 60 até ontem, dizer que a Igreja tinha o dom profético de denunciar os poderosos e os opressores era coisa “comunista” e pecaminosa, que atentava contra a ordem da Igreja e a proposta de um “reino”. Até ontem, para o movimento evangélico, profecia era falar do futuro. Até ontem, eram os católicos insurgentes da Teologia da Libertação que falavam essas coisas de “denúncia” e utilizavam expressões como “poderosos” e “opressão”.
Não sou católico. Sou evangélico. Mas sou devedor e admirador dos santos revolucionários inspirados por Deus que fundaram e fundamentaram numa teologia profunda, concreta, material e comprometida a profecia como denúncia contra os poderosos. Dizem que a última afirmação teológica de Dom Hélder foi “não deixem morrer a profecia”. Perseguido pela Ditadura, amigo íntimo de Paulo Freire, protetor e defensor da Teologia da Libertação dentro da estrutura conservadora da Igreja Católica Apostólica Romana, Dom Hélder entendia como o “pedagogo dos oprimidos” que “profecia é compromisso histórico […] Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais”. Profecia enquanto denúncia exige comprometimento radical, histórico e constante: só é verdadeira a profecia na boca de quem encarna a Palavra. José Comblin, também perseguido pelos militares e pela própria Igreja por denunciar as estruturas de opressão, para quem entendia que Paulo determinava a profecia como dom mais importante, essa encarnação não é abstrata, é concreta, real. Assim, quanto à mensagem profética de Cristo diz:
“Há uma tendência de espiritualizar a mensagem de Jesus como se o Reino de Deus se limitasse aos bons pensamentos, às boas intenções ou às virtudes morais. O Reino de Deus é moral porque é material. O pecado é material e a salvação também é material. O pecado é a fome, a violência, a dominação, a desigualdade, a exclusão. O Reino de Deus é o fim da pobreza, a igualdade, a paz. mas, para torná-lo presente, haverá muita luta, muito sofrimento, muitos fracassos e muitas vitórias, incluindo perseguição e morte. Jesus não promete repouso, tranquilidade, satisfação de todos os desejos […] A Igreja deve oferecer aos mais desesperados o testemunho de sua esperança. Ela é o povo que permanece acordado e vive a esperança mostrando-a no meio das criaturas humanas mais desesperadas e excluídas”.
Antes e fundamental para se dizer que a “profecia é denúncia contra os poderosos” é o comprometimento radical com os excluídos! É isso que possibilita, encarna e determina a denúncia. Quem são os poderosos? O Estado? As instituições políticas? O Governo? O Mercado? É opressor, dominador ou poderoso todo sistema que oprime, exclui e marginaliza: gera oprimidos. Não é um ou outro, esse ou aquele. Tomando posição e se comprometendo com o oprimido, sabe-se contra quem é necessário levantar denúncia. É a partir da experiência dos excluídos, tal qual os profetas fizeram! É a partir dos pobres. É trazer de volta a vocação de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar as boas-novas aos pobres, anunciar libertação aos presos, restaurar a vista dos cegos, dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor”.
Infelizmente a denúncia conveniente de teólogos e pastores evangélicos tem outra função: não mais libertar o excluído, mas atacar o Governo enquanto distancia a igreja das decisões políticas, da comunidade política, da organização popular e de coletivos. Cria um muro para preservar um gueto pseudo-sacro-santo. Na minha própria comunidade religiosa tive que ouvir isso! Discurso vazio que afasta as pessoas da vida de verdade, da responsabilidade e comprometimento com a comunidade de vida que circunda e permeia a comunidade religiosa. Discurso que cria rebanho alienado ao invés de incentivar a participação política, formação de quadros honestos, gente que no futuro possa ser bom governante, bom cidadão, comprometido com o pobre e combatente contra a corrupção. Fazer isso pra quê? Melhor é afastar o povo das únicas instituições que organizam a sociedade e podem ser ferramenta e instrumento para a melhoria da vida da população.
O que está por trás desse discurso fácil e cômodo dos líderes evangélicos é uma analogia indevida e limitada entre “reis” e “governantes”. Ou seja: apenas os “governantes” são os poderosos opressores. Pior que isso, é perceber que as cabeças das autoridades se revelam politicamente mal formadas: pensam que as prerrogativas da monarquia foram transferidas para o Estado na República. Pelamor! A denúncia profética é contra os poderosos: líderes sociais ou políticos, sacerdotes e ricos que oprimem o Povo. A denúncia não é, portanto, contra os cargos, mas contra a OPRESSÃO, a favor dos EXCLUÍDOS. Sem este fundamento, é mero artifício político enfraquecedor da cidadania e que limita, ainda mais, as possibilidades dos oprimidos tomarem caminhos que possibilitem sair da opressão. Como Enrique Dussel escreve:
“O pecado a ser denunciado não é exclusivamente individual; o pecado não é apenas social, histórico, institucional, relação social, mas também, além disso, o pecado se organiza, tem consciência de si, funciona como sujeito […] o essencial é compreender sua práxis histórica, a de seus mensageiros (Mateus 25:41) que são também os dominadores, os pecadores, os ‘ricos’… ‘Os príncipes das nações as dominam e os poderosos as oprimem’ (Mateus 20:25). A práxis do pecado, a dominação (constituir-se como ‘Senhor’ do outro alienado) se institucionaliza através das estruturas políticas, religiosas, ideológicas, econômicas. Não há um pecado religioso de um lado e uma falta política ou econômica secular de outro. Toda dominação ou falta contra o outro é pecado contra Deus! É falso separar o pecado de um lado e as estruturas e instituições históricas de outro; porque essas são as maneiras concretas como Satã exerce seu reinado neste mundo, através dos seus anjos: os homens que dominam seus irmãos. O pecador, o ‘rico’, o dominador é o ‘enviado’ do Príncipe deste mundo para institucionalizar seu reinado; quer dizer, as estruturas históricas do pecado como ‘relação social'”.
O problema não é o Estado, o Mercado, a igreja, a Escola… O problema é a dominação, a opressão, a exclusão: ela deve ser denunciada. A profecia como denúncia está sendo utilizada para distanciar-nos, nós, enquanto fiéis, destas estruturas e da participação nelas para transformá-las, para denunciar o pecado e lutar com o excluído, com o pobre, com o oprimido. Não é denúncia “ao rei”: é denúncia à opressão, seja do rei, do líder, do sacerdote ou do rico! Isaías, por exemplo, a cada capítulo enxovalha os ricos e os sacerdotes. Habacuque ataca os líderes do povo e os sacerdotes. Amós vai até o palácio não para se distanciar da política, mas para criticá-la a partir do povo, dos excluídos, dos que estão “aqui fora”. Continuar lendo