A Bíblia Política: a profecia hipócrita de teólogos evangélicos

alfonsin_claima20101125_0152_8Uma verdade não é uma verdade sozinha. Ela tem corpo sentido e “testemunho” através da vida de quem a profere. O “eu sou a verdade” de Cristo é uma afirmação materialmente mais dura do que parece: eu vivo o que falo e falo o que estamos vivendo. O logos que se faz carne e habita requer que quem o siga seja testemunho vivo, ou melhor, mártir: encarne a mensagem. O crivo de verdade não é a palavra escrita, mas a Palavra Viva, que se renova a cada manhã enquanto a vivos a vivem. “O trabalho liberta” até é uma expressão válida; mas como lema cunhado acima dos portões de Auschwitz, torna-se mentira assassina. Dizer que “profecia é denúncia contra os poderosos” é verdade na boca de Dom Pedro Casaldáliga, mas tem sido falsidade peçonhenta nos textos de líderes e teólogos evangélicos

Textos tem sido escritos, mensagens pregadas, desculpas armadas e vídeos produzidos por lideranças e “estudiosos” evangélicos afirmando que “profecia é denúncia aos poderosos”, com uma ressalva importante: os poderosos são necessária e exclusivamente os “reis”. Os sacerdotes, os ricos e líderes curiosamente não entram na conta. Pior que isso, é ver que esse discurso está sendo apropriado para dizer que é função da igreja ser “denunciadora”, e por isso deve se afastar das instituições políticas: assim é capaz de “denunciar”. Denunciar quem, especificamente? Quem estiver no Governo. A partir de uma análise ou consciência politica? Não. Apenas seja contra as instituições políticas: “elas são sujas por natureza”. A função de denúncia da Igreja está sendo utilizada não para politizá-la,  mas para desarticular seus membros: o efeito gerado é o afastamento das decisões políticas, o distanciamento “do que está acontecendo lá fora”, no mundo. Na verdade, esse discurso não é para durar para sempre: é oportunismo religioso para denunciar única e exclusivamente o governo que está aí agora. Por quase 100 anos de evangelicalismo no Brasil, pela primeira vez curiosa e coincidentemente profecia está sendo “entendida” e apresentada como “denúncia”.

Além de hipocrisia e apropriação indevida, é desonestidade e violência à história de santos que lutaram verdadeiramente para propor e defender a profecia como e enquanto denúncia contra os poderosos. A verdade é que das décadas de 60 até ontem, dizer que a Igreja tinha o dom profético de denunciar os poderosos e os opressores era coisa “comunista” e pecaminosa, que atentava contra a ordem da Igreja e a proposta de um “reino”. Até ontem, para o movimento evangélico, profecia era falar do futuro. Até ontem, eram os católicos insurgentes da Teologia da Libertação que falavam essas coisas de “denúncia” e utilizavam expressões como “poderosos” e “opressão”.

Não sou católico. Sou evangélico. Mas sou devedor e admirador dos santos revolucionários inspirados por Deus que fundaram e fundamentaram numa teologia profunda, concreta, material e comprometida a profecia como denúncia contra os poderosos. Dizem que a última afirmação teológica de Dom Hélder foi “não deixem morrer a profecia”. Perseguido pela Ditadura, amigo íntimo de Paulo Freire, protetor e defensor da Teologia da Libertação dentro da estrutura conservadora da Igreja Católica Apostólica Romana, Dom Hélder entendia como o “pedagogo dos oprimidos” que “profecia é compromisso histórico […] Somente podem ser proféticos os que anunciam e denunciam comprometidos permanentemente num processo radical de transformação do mundo, para que os homens possam ser mais”. Profecia enquanto denúncia exige comprometimento radical, histórico e constante: só é verdadeira a profecia na boca de quem encarna a Palavra. José Comblin, também perseguido pelos militares e pela própria Igreja por denunciar as estruturas de opressão, para quem entendia que Paulo determinava a profecia como dom mais importante, essa encarnação não é abstrata, é concreta,  real. Assim, quanto à mensagem profética de Cristo diz:

“Há uma tendência de espiritualizar a mensagem de Jesus como se o Reino de Deus se limitasse aos bons pensamentos, às boas intenções ou às virtudes morais. O Reino de Deus é moral porque é material. O pecado é material e a salvação também é material. O pecado é a fome, a violência, a dominação, a desigualdade, a exclusão. O Reino de Deus é o fim da pobreza, a igualdade, a paz. mas, para torná-lo presente, haverá muita luta, muito sofrimento, muitos fracassos e muitas vitórias, incluindo perseguição e morte. Jesus não promete repouso, tranquilidade, satisfação de todos os desejos […] A Igreja deve oferecer aos mais desesperados o testemunho de sua esperança. Ela é o povo que permanece acordado e vive a esperança mostrando-a no meio das criaturas humanas mais desesperadas e excluídas”.

Antes e fundamental para se dizer que a “profecia é denúncia contra os poderosos” é o comprometimento radical com os excluídos! É isso que possibilita, encarna e determina a denúncia. Quem são os poderosos? O Estado? As instituições políticas? O Governo? O Mercado? É opressor, dominador ou poderoso todo sistema que oprime, exclui e marginaliza: gera oprimidos. Não é um ou outro, esse ou aquele. Tomando posição e se comprometendo com o oprimido, sabe-se contra quem é necessário levantar denúncia. É a partir da experiência dos excluídos, tal qual os profetas fizeram! É a partir dos pobres. É trazer de volta a vocação de Jesus: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar as boas-novas aos pobres, anunciar libertação aos presos, restaurar a vista dos cegos, dar liberdade aos oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor”.

Infelizmente a denúncia conveniente de teólogos e pastores evangélicos tem outra função: não mais libertar o excluído, mas atacar o Governo enquanto distancia a igreja das decisões políticas, da comunidade política, da organização popular e de coletivos. Cria um muro para preservar um gueto pseudo-sacro-santo. Na minha própria comunidade religiosa tive que ouvir isso! Discurso vazio que afasta as pessoas da vida de verdade, da responsabilidade e comprometimento com a comunidade de vida que circunda e permeia a comunidade religiosa. Discurso que cria rebanho alienado ao invés de incentivar a participação política, formação de quadros honestos, gente que no futuro possa ser bom governante, bom cidadão, comprometido com o pobre e combatente contra a corrupção. Fazer isso pra quê? Melhor é afastar o povo das únicas instituições que organizam a sociedade e podem ser ferramenta e instrumento para a melhoria da vida da população.

O que está por trás desse discurso fácil e cômodo dos líderes evangélicos é uma analogia indevida e limitada entre “reis” e “governantes”. Ou seja: apenas os “governantes” são os poderosos opressores. Pior que isso, é perceber que as cabeças das autoridades se revelam politicamente mal formadas: pensam que as prerrogativas da monarquia foram transferidas para o Estado na República. Pelamor! A denúncia profética é contra os poderosos: líderes sociais ou políticos, sacerdotes e ricos que oprimem o Povo. A denúncia não é, portanto, contra os cargos, mas contra a OPRESSÃO, a favor dos EXCLUÍDOS. Sem este fundamento, é mero artifício político enfraquecedor da cidadania e que limita, ainda mais, as possibilidades dos oprimidos tomarem caminhos que possibilitem sair da opressão. Como Enrique Dussel escreve:

“O pecado a ser denunciado não é exclusivamente individual; o pecado não é apenas social, histórico, institucional, relação social, mas também, além disso, o pecado se organiza, tem consciência de si, funciona como sujeito […] o essencial é compreender sua práxis histórica, a de seus mensageiros (Mateus 25:41) que são também os dominadores, os pecadores, os ‘ricos’… ‘Os príncipes das nações as dominam e os poderosos as oprimem’ (Mateus 20:25). A práxis do pecado, a dominação (constituir-se como ‘Senhor’ do outro alienado) se institucionaliza através das estruturas políticas, religiosas, ideológicas, econômicas. Não há um pecado religioso de um lado e uma falta política ou econômica secular de outro. Toda dominação ou falta contra o outro é pecado contra Deus! É falso separar o pecado de um lado e as estruturas e instituições históricas de outro; porque essas são as maneiras concretas como Satã exerce seu reinado neste mundo, através dos seus anjos: os homens que dominam seus irmãos. O pecador, o ‘rico’, o dominador é o ‘enviado’ do Príncipe deste mundo para institucionalizar seu reinado; quer dizer, as estruturas históricas do pecado como ‘relação social'”.

O problema não é o Estado, o Mercado, a igreja, a Escola… O problema é a dominação, a opressão, a exclusão: ela deve ser denunciada. A profecia como denúncia está sendo utilizada para distanciar-nos, nós, enquanto fiéis, destas estruturas e da participação nelas para transformá-las, para denunciar o pecado e lutar com o excluído, com o pobre, com o oprimido. Não é denúncia “ao rei”: é denúncia à opressão, seja do rei, do líder, do sacerdote ou do rico! Isaías, por exemplo, a cada capítulo enxovalha os ricos e os sacerdotes. Habacuque ataca os líderes do povo e os sacerdotes. Amós vai até o palácio não para se distanciar da política, mas para criticá-la a partir do povo, dos excluídos, dos que estão “aqui fora”. Continuar lendo

Nasci para ser senhor de engenho: o colonizador que habita na gente

1214065231310_f“O que nos forma são as instituições”, é o que Jessé Souza tem apontado. Não somos filhos do encontro mágico ou trágico do branco com o negro, do índio com o branco, do negro com o índio. Esses encontros são possibilitados por uma estrutura ou sistema instituído entre os sujeitos. É assim que o que nos forma são as instituições. O que funda o Brasil que vivemos hoje não é o encontro entre pessoas: é a exploração colonial e, principalmente, a instituição da escravidão. É ela que regula a sociedade por mais de 400 anos, media as relações entre os sujeitos, estabelece a divisão de trabalho e sustenta crenças, direciona a construção das cidades, organização no campo, formação das famílias, costumes…

Somos filhos da escravidão. Não se apagam 400 anos com uma canetada de princesa. Como Joaquim Nabuco profetizou: nunca seremos uma nação enquanto não superarmos as marcas da escravidão. Para ele, isso levaria uns séculos… Mas para a gente, não! Afinal, escravos já foram “abolidos”, mesmo. Ahá! Exatamente isso: não foi a escravidão “abolida”, os escravos é que foram abolidos. Abolição da escravatura foi jogar gente do nada para o nada. A força de trabalho que sustentava o modo de produção foi jogada fora, só! Houve mudança estrutural? O sistema foi golpeado radicalmente? Não. Literalmente, foi para “inglês ver”. A estrutura se mantém: as correntes são postas de lado e substituídas por uma coisa inusitada: salário (mínimo). O que prende o escravo/empregado ao senhor-de-engenho/patrão não é mais a lei do chicote, mas a necessidade de moeda para comprar pão.

São as instituições que nos formam. Escravos são abolidos, mas a instituição da escravatura não foi substituída, suprimida ou “revolucionada”: houve uma transformação, sem crise sistêmica. Somos filhos e fruto da escravidão. Isso não aconteceu há milhares de anos, foi ontem, enquanto fomos o último país a abolir a escravidão: 1888, três anos antes de nos “tornarmos uma República”. Aliás, como nasce essa República? Da revolta social? Povo? Não; Golpe Militar. Ninguém viu e nem ficou sabendo. Jornais da época relatam que as pessoas se perguntavam se era comemoração do dia da Independência fora de época. Ninguém, viu, participou ou entendeu que raio era aquilo.

O que nos forma são as instituições! É um Estado republicano que nasce de um golpe militar e que tinha como estrutura centenária a exploração abusiva da terra, a escravidão, o massacre social. Uma igreja colonial que mantém as crenças, os costumes e as práticas religiosas do tempo de escravidão inalteradas (e o país era católico! Todo nascido crescia nessa igreja, aprendia essa religião). Escola era para rico e nobre. Filho de senhor de engenho ia estudar em Portugal, dar um rolê na França, voltava para cá para ser médico, advogado, parlamentar ou manter o trabalho de fazendeiro senhor-de-engenho do pai. E a população de verdade? A “galera”, o “povão”? Ou com chicote nas costas, ou sendo funcionário/capataz, ou ralando muito para conseguir vender o fruto de seu trabalho, coisa pouca, para os donos da escravidão. Nasce na casa grande, no comércio ou na senzala. Mas livre? Daquele jeito que a lenda de indivíduos felizes e contentes, ninguém no mundo nasce, não. Somos formados pelas instituições!

No mestrado estamos trabalhando Teoria Crítica. Uma das perguntas norteadoras é “como é possível nascer um sujeito fascista?”. Isso tem deixado a gente bem agoniado. Mas, adaptando um pouco à nossa história, nossa terra e nossa cultura, a pergunta aqui é “como é possível nascer um sujeito colonial?”. As tensões políticas tem apresentado faces de nossa estrutura subjetiva que a gente normalmente finge não ver: temos em nós senhores-de-engenho, capatazes e escravos. Criei indevidamente esses três modelos teóricos de sujeito, a lá um esqueminha weberiano sem vergonha. Parece que tendemos mais para um lado, para outro… Temos em nós os três em diferentes medidas e situações. A questão é: somos sujeitos coloniais, e as instituições que nos formam nos forçam a isso. Continuar lendo

Manifestações e amadurecimento político

12abr2015-manifestantes-estendem-faixa-com-a-frase-nao-precisamos-de-reforma-politica-durante-ato-contra-o-governo-da-presidente-dilma-rousseff-na-avenida-paulista-em-sao-paulo-o-protesto-foi-142888É comum o frase-pronta de que as manifestações de junho-julho de 2013 acabaram em nada, não geraram transformações. Mas seria possível imaginar as Ocupações das escolas em São Paulo no fim do ano passado sem aquela experiência política popular explosiva e tão expressiva? A instabilidade política que vivemos hoje teve data de início: junho-julho de 2013. Ali o “Estado intocável” foi ferido – e depois que uma divindade sangra, perde seu poder aos olhos dos homens. Foi uma possibilidade de abertura política, mas com ela sempre vem a reação de desespero por “reorganização” do status quo. Um político de velha guarda e um que acabou de garantir sua cadeira mágica não vão querer perder sua majestade…

Os privilégios de uma cadeira na direção do Estado foram questionados. O fundamento e funcionamento do próprio Estado foram questionados. Essa é a “instabilidade”: podemos tanto seguir para uma experiência política popular legítima de libertação, quanto para a reorganização e fechamento político regido por uma elite política oportunista. É a ambiguidade de cada experiência. E como paradigma de atividade política fica um quadro com dois caminhos: Ocupações de escolas por secundaristas e manifestações “sem-bandeira”.

As manifestações de 2013 foram dirigidas e organizadas pelo Movimento Passe Livre (MPL). Um coletivo estruturado, com objetivos e projetos claros. Quem aderisse à manifestação sabia o porque se estava manifestando: contra o aumento do preço das passagens. Era esse o objetivo, o grito e a função do movimento. Ele inchou de repente. Muita gente foi à rua para manifestar junto ao MPL contra o aumento; mas ao mesmo tempo afirmavam que “não era pelos 20 centavos”. Apesar da contradição, ao entrarmos para a manifestação junto ao Passe Livre, gritávamos os mesmos gritos e exigíamos o mesmo que era exigido. O recuo por parte do Estado foi a vitória do movimento e das manifestações. E elas acabaram ali? Por um lado, sim: o MPL tinha como objetivo claro e discurso hegemônico a luta pelo preço do busão. Por outro, não: aqueles que aderiram por mais do que o preço do ônibus sentiram a necessidade de continuar frentes de luta.

O problema é que o MPL tem tempo de projeto e organização. Não começou ontem, mas é um coletivo organizado, politizado e com planejamento claro. O discurso é hegemônico e a participação junto ao movimento requer a adesão a esse discurso. Mesmo quem dissesse naquele tempo “não é pelos 20 centavos”, no exercício político público exigia os 20 centavos. Essa era a luta política. Assim, participação e movimento político requerem esse princípio: discurso hegemônico claro e objetivo. Requer projeto organizado coletivamente.

As Ocupações das escolas no ano passado foram um ato verdadeiramente político. Um banho e uma aula de Política em excelência dada por adolescentes a nós, jovens, adultos e velhos que não temos noção e nem formação política madura – apesar da idade. Minimamente houve uma organização com objetivos, projeto e discurso hegemônico: contra a reorganização das escolas proposta pelo Estado. Todos os secundaristas exigiram isto. Se articularam. Tudo o que era dito por um aluno respondia e era assumido por todos. Isso é uma atividade política! Não eram indivíduos fazendo alguma coisa; era um coletivo de alunos, uma comunidade politizada. Todos sabiam o que queriam e o que seria feito. Logo que o Governo recua, acaba o movimento. Continuar lendo

Sacrifícios e atividade política

USA. God, Inc.

Cada dia que passa a o que Carl Schmidt concluiu a respeito da política moderna se torna mais certeira: o Estado moderno é estruturalmente teológico. Dogmas, ritos, entidades supremas, hierarquias ficas e a eterna disputa pela “legitimidade” (quem é eleito como o “certo” de acordo com a vontade divina). Mas Schmidt entendia “política” como atividade exclusiva do Estado – sua conclusão parte da leitura do Leviatã, de Hobbes. Mantendo a ideia, mas sacando política como atividade do “Estado ampliado”, incluindo a ação dos sujeitos envolvidos enquanto cidadãos, como propõe Gramsci, por exemplo, uma estrutura teológica também explica bem nossa recente experiência política brasileira. Pelo jeito, a velha formulação de Marx em que “a crítica teológica é a primeira crítica política” vale muito

Nas aulas de Temas de Filosofia Política que estão acontecendo lá no mestrado nesse quadrimestre, temos discutido bastante a relação Psicanálise-Política para entender a ação dos sujeitos: porque agem ou não agem de determinada maneira em suas situações. Quais seriam os mecanismos de controle do “aparato psíquico” dos sujeitos e quais as possibilidades de saída, de libertação. Mas o interessante aqui é: mesmo que sejamos controlados, regrados, disciplinados e tudo mais, as pulsões contidas vão para algum lugar. Na Psicanálise, nos referimos comumente à sexualidade. Aqui, vamos dar outra roupagem para ajudar na troca de ideia: aquilo que movia os rituais públicos de antigamente também acaba escoando para algum lugar! Religião (apesar de ser jogada como uma eleição ou preferência privada) sempre foi experiência comunitária e pública: eram momentos corporais de excitação ou sofrimento em conjunto experienciados e praticados em cultos. Assim, mesmo que a prática institucional seja confinada no campo “privado”, aquele, digamos assim, impulso religioso que é público e comunitário não se confina e nem se isola nas quatro paredes de uma igrejinha na esquina, num terreiro, casa ou templo.

Sacrifícios eram (ou são) rituais públicos em que toda a comunidade se envolvia. Eram práticas primordialmente religiosas, mas tinham caráter e implicações políticas, sociais, econômicas e culturais. Como René Girard mostra, toda a tribo ou comunidade participava ativamente da experiência; no desespero por um bom ano ou para pagar uma dívida com o divino, o mais puro era escolhido como oferta aos deuses em troca de segurança para um tempo na vida. Esse era um tipo de sacrifício: de purificação ou pureza. O intuito era manter segura e estável a vida comunitária. Mas também havia outro tipo de sacrifício: o de raiva-vingança. Quando a comunidade estava irada com uma situação ou com um considerado excessivamente culpado, sacrificava este sujeito para apagá-lo da terra, superar o mal. Era o sacrifício mais violento, impetuoso. De qualquer modo, havia sacrifícios; prática comunitária, religiosa e política.

Pois bem, não temos mais o rito sacrificial público. Quando se é exigido algum tipo de oferta, ela é individual, de auto-flagelo, quase que uma religiosidade liberal: cada um cuida do seu e faz o que quer com ele. Mas a experiência ou o impulso que culmina nesse ritual público não encontra mais sua “casa” oficialmente. E ele vai para onde? Para algum lugar…

Jung Mo Sung e Fraz Hinkelammert trabalham muito a questão do sacrifício. Um dos pontos centrais é: o Mercado exige diariamente sacrifícios humanos para sua manutenção, que são tolerados e como a garantia do bem de todos. São nossos sacrifícios de purificação modernos: a morte e o sofrimento dos marginalizados pelo Mercado e dos oprimidos por trabalhos insuportáveis é visto como efeito colateral, como paga para a aposta de futuro melhor e garantia da vida segura e minimamente estável de agora. Como diríamos: “pimenta no ¢* dos outros é refresco”. Esse sacrifício não rende muita polêmica ou atenção: ele é fruto de desespero, total falta de esperança. É costume indiferente que assumimos como parte da vida e como a atitude que nos garante a continuidade da própria vida (ou do próprio sistema em que vivemos). É o sacrifício de purificação: uns pobres coitados inocentes acabam tendo que morrer para fazer a roda girar.

Mas o sacrifício de vingança, esse sim, ganha capa de jornal e torcida. Uns contra, outros a favor dos sacrificados, o momento do show segurando a tensão e a excitação para o clímax e a urgência do final horroroso faz nascer na boca do estômago dos participantes do rito a necessidade da morte. Tem que haver vingança, o mal deve ser estirpado. Qual mal? Aquele que parece estar num único sujeito. No fundo, a vingança não apaga o mal, mas o sacrifício dá a sensação de que ganhamos mais um tempo aplacando a ira dos deuses. O pecado foi resolvido com a morte de mais um que merecia.

O problema é que o mal continua; e o próximo sacrifício de vingança já entra na história em potência. O de pureza ou desespero está acontecendo todo dia, a todo instante. E a vida política caminha acriticamente repetindo os ritos sacrificiais sem saber o que está acontecendo e nem se deveria acontecer. Nossa vida política está praticando esses sacrifícios: condescendente com a morte, ativista da vingança. Uma das loucuras é que nada está sendo efeito  pelos adoradores; todo o esforço e performance é realizado pelo sacerdote, seus auxiliares, talvez o “chefe” e alguns figurões. O povo, os fiéis, apenas assistem. Não se sentem representados pelo sacerdote, pelos auxiliares ou pelo chefe, mas se sentem eles próprios estes atores – e não o são!  O povo é no mínimo torcedor; no máximo a faca que imola a vítima do sacrifício: pois é só com a permissão e desejo dele que um sacerdote teria coragem de meter a lâmina na garganta de alguém. Continuar lendo

Talvez sejamos os primeiros brasileiros

criança_muitasbocasnotrombone2O povo brasileiro de Darcy Ribeiro já é e está eternizado. O trabalho encantador e inspirador de traçar raízes históricas e antropológicas da gente que mora aqui abre janelas, enche nosso pulmão de fôlego e vontade de ser brasileiro. Vontade, desejo, pois não o somos. Não somos Povo brasileiro, somos nascidos no Brasil. Não conhecemos e nem reconhecemos nossa História: nem do país e nem de nossa própria casa. Não sabemos nosso lugar no tempo e no mundo. Não temos uma identidade, não carregamos uma mesma marca, não somos daqui. Todos nos sentimos desterrados. Estamos em falta, o Brasil está em falta. Falta um Povo, de gente que vive de uma História recente e não consciente

Recentemente propus para alguns amigos que reconstituíssemos as histórias de nossas famílias. Todas elas eram absurdamente diferentes. Cada um tinha uma ascendência diferente, uma mistureba de etnias diferentes e de tradições religiosas diferentes. Ao mesmo tempo, eramos todos brasileiros, paulistanos e paulistas. Nos sentíamos parte de um mesmo grupo por estarmos próximos, mas nossas histórias, crenças e experiências não nos conectavam.

Meu bisavô por parte de pai, nasceu no início do século XX em Minas Gerais. Era de uma família de ex-escravos: um negro de quase 2 metros de altura. Seu casamento com minha bisavó foi um pouco estranho: foi até uma tribo guarani que ainda existia no interior, perto da vila em que morava, tomou-negociou uma ídia baixinha de pouco mais de 1,50 m e levou ela embora contra sua vontade. Minha bisavó sofreu nessa estranheza de relação abusiva-não-amorosa. Deles nasceu meu avô, Vicente, lá na década de 30 (não sabemos quando ele nasceu, pois não tinha certidão de nascimento: teve seu primeiro documento para casar no cartório, mas ninguém sabia qual era a sua real idade. Quando ele faleceu, há 11 anos, discutimos por um tempo a respeito de sua provável idade). Assim, meu avô era cafuso.

Seu Vicente, cafuso, casou-se com uma branca de família ibérica vinda para o Brasil em busca de terra. Ela faleceu depois de ter dois filhos; então Vicente se casou a prima de sua mulher, minha vó, Jandira. Em 1964, nasceu meu pai, Eliel. Qual a sua etnia? “Branco” ou “Caucasiano” que não é…

Por parte de mãe, tive um bisavô filho de um nordestino de ascendência islandesa com uma alemã. Este bisavô, Alfredo, se casou com dona Tereza, filha de um polonês com uma mestiça paraense. Tiveram meu avô, Alberto, que se casou com uma portuguesa de Braga filha de uma portuguesa com um francês que veio para o Brasil nos anos 50. Em 1968, tiveram a Gi, minha mãe. Dessa mistura, nasceu uma branca, com uma carga genética europeia, mas de qual etnia? Qual sua “nação”? Onde se imaginaria numa mesma família alemães, poloneses, islandeses, um francês, uma portuguesa e mestiços?

Esta história familiar começa coincidentemente com a instauração da República no Brasil. É do início do século XX pra cá. Nesta bagunça, eu, particularmente, me sinto um legítimo brasileiro, talvez, o primeiro da família…

Todos os meus progenitores tem sua história e cultura enraizada em outro lugar. Nesta terra, não estavam em sua terra. Talvez minha bisavó indígena estivesse em sua terra, sua própria cultura; mas meu bisavô fez o favor de desterrá-la. Ele mesmo, sendo filho de ex-escravos, nunca esteve na própria terra: era filho de desterrados que trabalhavam na terra de outros como e enquanto escravos. Não eram livres. Tinham saudade de uma terra que nunca puseram os pés e, ao mesmo tempo, só conheciam este chão que pisavam e não era deles. Mesmo no caso dos europeus, nenhum veio como amante da terra ou com plano de criar e produzir alguma coisa aqui: vieram para explorar e garantir a sobrevivência. Aqui nunca foi seu lugar, os vizinhos nunca foram seu próprio Povo.

Acho que em minha avó portuguesa essa postura fica mais evidente: veio para cá em busca de condições de vida melhores, para superar a pobreza da família na periferia lusitana de um tempo totalitário e garantir sustento por aqui: tirar o que for possível para viver. Explorar, querendo ou não. O Brasil deve “dar alguma coisa”, “garantir” recursos para a sobrevivência. Quando não o faz, perde seu status de terra e imediatamente é problema, obstáculo, inútil. Ninguém se sente brasileiro: Brasil é sempre “terceira pessoa” a ser explorada ou que nos oprime.

A ascendência alemã de meu bisavó veio para o Brasil no projeto republicano de “branqueamento da população”, no sul. Veio em busca de usar a terra. Os ibéricos, também. O filho de escravos, pela primeira vez, tentaria garantir o seu espaço. A índia não resiste ao ataque e sofre nas mãos dos “brasileiros” que abusam dela. Os poloneses fugiram de guerras, vieram para cá sem querer vir. Ninguém estava, esteve ou estará preocupado com a terra, com a gente, com o futuro, com a cultura. Todos se aproximaram circunstancialmente; mas não há estrutura de Povo ou possibilidade de Povo. Continuar lendo

Pão da vida: princípios para uma nova Economia

meh.ro687Somos as conexões com nosso passado, imersos no processo evolutivo da vida, participantes de uma espécie, construídos em nossos antepassados e nos acontecimentos históricos e culturais de nosso povo, numa comunidade, numa casa, com uma família, em interação com  o meio que se nos apresenta (a rua, o sol, o clima, os traumas, as  alegrias, trabalhos, presentes…) e as relações pessoais, cara-a-cara, de afeto e inimizade. Somos sujeitos intersubjetivos. Somos todas essas experiências concretas e materiais juntas, em continuidade. Somos uma corporalidade – como diz Enrique Dussel. Não é uma massa de carne e/ou um espírito ou funções mentais; somos um corpo, construído com tudo isso, em continuidade e comunidade

Nessa complexidade profunda que nos constitui enquanto gente viva, agimos, interagimos e nos relacionamos com a gente toda em determinados espaços – também construídos nos processos históricos e culturais vivos. Assim, quando entramos no ônibus, sabemos como nos relacionar, agir e interagir. Quando estamos numa sala de aula ou num show, sabemos de certos princípios norteadores de como agir, interagir  e nos relacionar.

Ontem fui à comunidade religiosa da qual faço parte. Cresci e fui formado nela, com ela e com as pessoas que a sustentam (no sentido vivo de sustento). Estar lá ou participar do que acontece lá é processo fundante de minha história sócio-cultural e de minha corporalidade. Lá, conversei com uns amigos e comentamos da função social, política e cultural da religião e das instituições religiosas. É diferente da função social, política e cultural de uma universidade, escola, sala de aula. Mas as duas me constituem e atuo, interajo e me relaciono tanto em uma quanto em outra. O que vivemos em cada ambiente interfere em todos os outros campos de nossa vida; por isso precisamos saber como agir, o que fazer: precisamos nos posicionar. Com isso, percebi que, pessoalmente, me posiciono da seguinte maneira: 1. na instituição religiosa, utilizo da mensagem bíblica para propor uma economia, política, cultura, filosofia, etc.; 2. na universidade, utilizo da economia, política, cultura, filosofia, etc., para transmitir princípios fundamentais que me constituem – e que, querendo ou não, estão conectados de algum modo à mensagem religiosa que me formou.

Tendo sacado isso ontem nas conversas com os amigos, entendi melhor a relação teologia-filosofia, teologia-política, teologia-economia, etc., que tenho que enfrentar. Quando estamos no ambiente religioso, a mensagem de Cristo é porta para a produção de conteúdo nas áreas materiais, concretas e cotidianas de nossa vida. Quando estamos em outro ambiente, os conteúdos das áreas materiais, concretas e cotidianas de nossa vida podem se encontrar com a porta de Cristo. A questão é saber o lugar; saber se posicionar. Tendo essa clareza, inspirado na mensagem que foi trabalhada ontem na comunidade, vou utilizar o mesmo texto bíblico como porta para uma proposta de um princípio político-econômico que nos auxilie na construção de uma Nova Economia. Sob o tema “Pão da Vida”, uma nova proposta material, concreta e cotidiana para nossa economia pode nascer:

“Eu sou o pão da vida. Os seus antepassados comeram o maná do deserto, mas morreram. Todavia, aqui está o pão que desce do céu para que quem dele comer, não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém comer deste pão viverá para sempre. Este pão é minha carne e eu darei pela vida do mundo […] a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue verdadeira bebida. Todo aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Da mesma forma como o Pai que vive me enviou e eu vivo por causa do Pai, assim aquele que se alimenta de mim viverá por minha causa. Este é o pão que desceu do céu. Os antepassados de vocês comeram o maná e morreram, mas aquele que se alimenta deste pão viverá para sempre […] Ao ouvirem isso, muitos dos seus discípulos disseram: ‘Essa palavra é violenta! Quem pode suportá-la?'” [João 6: 48 – 61]

I. O que é isto?

Maná significa “o que é isto?”. É uma pergunta afirmativa ou uma afirmação interrogativa. Um tipo de estrutura semântica com a qual não estamos acostumados. De qualquer modo, não é isto que nos interessa, mas a analogia que a comunidade de João que escreveu este livro faz entre o que é isto e o Cristo. Repetições, na Bíblia, são indicações de que aquele assunto ou expressão é importante-fundamental para a compreensão da mensagem que está sendo interpretada. Assim, ao falar mais de uma vez dos “antepassados que comeram maná no deserto e morreram”, os escritores nos convidam a dar uma passada pelo desenvolvimento histórico-cultural desse povo e nos perguntar: o que isto tem a ver com Cristo?

No livro semita do Êxodo, que narra a libertação e constituição do povo judeu, há uma narração (no capítulo 16) que conta que o povo estava no deserto e se queixava de estar com fome. Reclamaram com Moisés, seu líder, e este foi reclamar com o Senhor. Da reclamação, o Senhor enviou um tipo de pão, maná, que brotava na madrugada e aparecia no chão para alimentar o povo – “presente do céu”. Cada um deveria pegar somente o necessário para sua Casa. Não poderia guardar para mais tarde ou para o dia seguinte. Não poderia haver acúmulo desse recurso. Claro que imediatamente, no primeiro dia, alguns procuraram guardar para si um “excedente”, como reserva acumulada ou para “comer mais”, mesmo. Mas o maná apodrecia. Durava somente um dia e o necessário para cada Casa: nem mais, nem menos. Era o alimento do deserto: era provisória alimentação para o tempo de deserto.

II. O pão vivo dá vida

Assim como o maná, Cristo se coloca como o pão que “vem do céu” para alimentar o povo. Esta é a primeira peça analogia proposta. Mas, rompendo com esta história tradicional daquele grupo, quem comeu do maná morreu e, como colocam os escritores, quem comesse desse Pão Vivo não morrerá. O maná era provisório, mas esse alimento Jesus é eterno. Há uma semelhança e uma distinção: são pães, mas um dura hoje enquanto outro dura sempre.

Além disso, Cristo não é apenas um alimento, mas uma causa. Causa, aqui, tem o sentido de “por quê” ou “por meio de”, por onde se atravessa, passa e, ao mesmo tempo, se mantém, não se perde: o que sustenta aquilo que está se fazendo. Não é apenas um por quê formal de justificativa (quando perguntam por que estamos fazendo isso?) e nem uma causa física direta (como toda causa acarreta um efeito). É uma proposição que subsume as duas: materialmente uma motivação e formalmente justificável. Cristo vive por causa do Pai e aquele que come da carne de Cristo vive por causa dele (por meio dele). Se alguém perguntasse “por quê você vive?”, a resposta seria “por causa de Cristo”. Aquilo que sustenta, fundamenta, seria o Pão Vivo que dá a vida.

E isso é central: Cristo oferece sua carne, sua vida. A palavra em grego que está no texto é sarx, que significa carne. Não é soma, que é o corpo. O corpo poderia ser de um cadáver, mas a carne não: ela é viva, de um ser vivo-vivente, a corporalidade de Cristo.  Ou seja: Cristo oferece ele ali, vivo, tal como está, para os outros. Sua proposta é que aquele que está com ele se alimente de sua carne, de sua corporalidade, de tudo o que ele é. Materialmente, Cristo oferece para que os demais vivam daquilo que ele tem, do fruto de seu viver, de sua força, de seu trabalho.

III. Economia do serviço (ou da dádiva)

Trabalhar é se esforçar, gastar energias, para produzir algo que devolva as energias constantemente gastas, mantendo-se, assim, vivo. É se matar para não morrer. Estar vivo é a exigência constante de se produzir algo para suprir o que falta, a necessidade que precisa ser satisfeita. É nesse sentido que Marx determina o homem como trabalho: a essência humana é trabalhar. Precisamos trabalhar para manter viva a vida. Continuar lendo

Profecia, justiça e construção da cidade – Daniel Penna

grafite arte urbana QBRK (11)[8]Publicamos hoje o texto de Daniel Penna, um dos participantes do Encontro de Estudo Bíblico de Adolescentes. O Dani trabalha temas como opressores-oprimidos, justiça, profecia, utopia e os processos políticos e projetivos de construção de uma cidade. A “cidade”, aqui, tem sentido da pólis ou civitas da tradição: o lugar político e cidadão. Todos os insights estão apresentados num panorama geral do livro bíblico de Miquéias:

Miquéias foi um profeta de Morasti-Gat em Judá, na época dos Reis Jotão, Acaz e Ezequias (ver 2º livro dos Reis, capítulos 15, 16 e 17). O livro de Miquéias fala muito sobre coisas ruins e problemas na politica da região. O assunto política é bem visivel nesse livro, por causa de citações e presença de graus hierarquicos muito bem definidos entre oprimidos e opressores. O livro apresenta dois tipos de profeta: os falsos profetas, que respondem aos governantes, e os reais profetas que respondem ao povo. Os falsos profetas são aqueles que falarão aquilo que é agradavel ao ouvido, até mesmo mentiras. Já os profetas reais são aqueles que sempre falarão a verdade, independente se ela é agradavel ou não.

Miquéias era um profeta real do povo, ele prega contra a injustiça e pecado dos opressores que são os governantes.   Continuar lendo

A Bíblia Política: último comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8Este é nosso último texto em busca da Bíblia Política: último comentário à Miquéias. Para quem tem lido e acompanhado nossos textos anteriores, algumas questões estão claras: há uma denúncia à cidade e à sua organização por parte de Miquéias. A cidade está corrompida, os sacerdotes, os líderes, os ricos e os governantes são corruptos. A cidade boa, Terra Prometida, Sião, foi construída com sangue – a um custo muito caro! Miquéias, então, enquanto denuncia, cria uma outra Sião, construída a partir da Justiça. Esta cidade boa anunciada se torna uma ferramenta crítica: é olhando para a possibilidade sem-lugar de algo melhor que somos capazes de encontrar e criticar a corrupção aqui. Assim, é possível criar um plano estratégico real e concreto para superar os problemas da cidade: um plano de luta. Agora, por fim, encontraremos o fundamento principal para a construção da cidade

Assim, este texto tem dois momentos: 1. proposta de uma leitura de Miquéias, deixando apenas os trechos (perícopes: divisão do texto bíblico) indicados para que quem quiser, faça sua própria interpretação final. 2. Uma avaliação do método do Encontro de Estudo Bíblico, suas implicações, produções e possibilidades. Cremos que teorizar o que fizemos possibilitará transmitir nossa prática e, quem sabe, reproduzir este movimento em outros lugares e momentos.

Agora, então, deixaremos apenas os trechos indicados para que cada um faça sua leitura. Tendo em conta o que foi construído até aqui (os comentários anteriores e seus significados -por exemplo, a diferença entre o Povo e a nação, o sentido de utopia, etc.), cabe uma conclusão e leitura autônoma, própria. Fica como dica alguns passos metodológicos: 1. Não leia os subtítulos e os números de versículo e capítulo, pois são apenas indicações para facilitar encontrar os textos. Podemos criar nossos próprios subtítulos e organização dos versículos e capítulos; 2. Faça perguntas ao texto, como ‘quem está falando?’, ‘para quem está falando?’, ‘o que ele quer dizer com ‘x’?’…; 3. Anote suas “hipóteses” de resposta às perguntas, mas deixe que o texto te diga se suas hipóteses estão corretas ou não. Deixe ser surpreendido pelo que está lendo. Segue nossa divisão de texto seguido de subtítulos criados por nós, como indicação de possibilidade de leitura:

O QUE DEVE SER PRATICADO NA CIDADE?

“Com o que eu poderia comparecer diante do Senhor e me curvar perante o Deus exaltado? Deveria oferecer sacrifício e holocausto de um bezerro? Ficaria o Senhor satisfeito com milhares de carneiros, com dez mil ribeiros de azeite? Devo oferecer o meu filho mais velho por causa da minha transgressão, o fruto do meu corpo por causa do pecado que eu cometi? Ele mostrou a você, oh Homem, o que é bom e o que o Senhor exige: pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus.” [Miquéias 6: 6 – 8]

OS RICOS NÃO PRATICAM  A JUSTIÇA

“A voz do Senhor clama contra a cidade; é sensato temer o Seu Nome!  Ouçam, tribo de Judá e assembleia dos cidadãos! Na casa do ímpio não há o tesouro da impiedade e a medida falsificada que é maldita? Poderia alguém ser puro com balanças desonestas e pesos falsos? Os ricos que vivem entre vocês são violentos; sua gente é mentirosa e as suas línguas falam enganosamente. Comerão, mas não ficarão satisfeitos: continuarão de estômago vazio. Acumularão, mas não preservarão nada: entregarei tudo o que guardarem à espada. Plantarão, mas não colherão: vão espremer azeitonas, mas não se ungirão com azeite. Espremerão uvas, mas não beberão vinho.” [Miquéias 6:9 – 15]

OS GOVERNANTES, OS JUÍZES E OS CIDADÃOS NÃO AMAM A FIDELIDADE

“Estou na desgraça! Sou como quem colhe frutos de verão na respiga da vinha: não há nenhum cacho de uva para provar, nenhum figo novo que tanto desejo. Os piedosos desapareceram do país; não há um justo sequer. Todos estão à espreita para derramar sangue: cada um caça o irmão com uma armadilha. Com as mãos prontas para fazer o mal o governante exige presentes, o juiz aceita o suborno, os poderosos impõe o que querem. Todos tramam em conjunto! O melhor deles é como o espinheiro, e o mais correto é pior que uma cerca de espinhos. Chegou o dia anunciado por suas sentinelas, o dia do castigo de Deus. Agora reinará a confusão entre eles. Não confie nos vizinhos, nem acredite nos amigos. Até com aquela que o abraça, tenha cuidado com o que diz, pois o filho despreza o pai, a filha se rebela contra a mãe, a nora contra a sogra. Os inimigos do Homem são seus próprios familiares. Mas quanto a mim, ficarei atento ao Senhor, esperando em Deus, o meu Salvador, pois Ele me ouvirá” [Miquéias 7: 1 – 7]

A CIDADE NÃO ANDA HUMILDEMENTE COM O SENHOR

“Não se alegre, cidade, minha inimiga, com minha desgraça. Embora tenha caído, vou me levantar. Embora esteja morando nas trevas, o Senhor será a minha luz. Por eu ter pecado contra o Senhor, suportarei a sua ira até que ele apresente a minha defesa e estabeleça meu direito. Ele me fará sair para a luz, contemplarei sua Justiça. Então a minha inimiga o verá e ficará coberta de vergonha. Ela me disse: ‘Onde está o Senhor, teu Deus?’. Meus olhos verão sua queda, ela será pisada como o barro nas ruas. O dia da reconstrução dos seus muros chegará, o dia em que se ampliarão suas fronteiras virá” [Miquéias 7: 8  – 11]

MAS O POVO SERÁ CUIDADO

“Pastoreia teu povo com o teu cajado, o rebanho da tua herança que vive à parte numa floresta em verdes pastagens […] Quem é comparável a você, Deus? Você que perdoa o pecado e esquece a transgressão do remanescente da sua herança. Você que não permanece irado para sempre, mas tem prazer em mostrar amor. De novo terá compaixão de nós; pisará em nossas maldades e atirará todos os nossos pecados nas profundezas do mar. Mostrará fidelidade a Jacó e bondade a Abraão, conforme prometeu sob juramento aos nossos antepassados em tempos antigos” [Miquéiias 7: 14 – 20]

Encontros de Estudo Bíblico:

I. O início

O Encontro de Estudo Bíblico é fruto da exigência de adolescentes de uma comunidade cristã. Eles apresentaram o desejo, ou até uma demanda, de continuar ou fortalecer seu processo de formação religiosa. A partir da queixa de haver uma lacuna ou ausência de trabalho com os conteúdos bíblicos e elementares para uma comunidade religiosa, criou-se o primeiro Encontro. Como experiência exitosa, mas ainda não estruturada, este espaço serviu como abertura à possibilidade de se trabalhar verdadeira e efetivamente a leitura e interpretação Bíblica. Depois de um tempo, com trabalhos pontuais e melhor estruturação teórica e técnica, foram realizados mais 2 Encontros. Duas coisas intrigantes: 1. a lacuna comunitária na formação religiosa dos adolescentes; 2. o desejo de se estudar a Bíblia como livro-fonte da religiosidade. “Por fora” da comunidade, alguns dos participantes procuraram modos de trabalhar a leitura e interpretação bíblica, mas foram insuficientes – o que indica uma possível lacuna da religião no trabalho de formação de sua juventude. Continuar lendo

Ele vem e intervem!

herege_joao_hus_concilio_constancaTrabalhar com teologia e filosofia política é sempre um problema. Acabamos sendo criticados tanto por liberais quanto por conservadores. No fundo, as duas correntes estão presas ao mesmo poste: não se deve misturar “as coisas” – como se houvesse um puro espaço sem teologia e um puro espaço sem política. Uma ilusão, ou melhor, uma ideia fetichizada que se torna dogma: um chavão pronto que evita nos colocar em situações complexas que requerem trabalho duro. Mas ao mesmo tempo ninguém se arrisca a dizer isso lendo Platão, Hobbes, Rousseau, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Vattimo, Sloterdijk… Todos utilizam da teologia para desenvolver suas teorias políticas. Nos termos de Marx, a crítica teológica é a primeira crítica política!

Carl Schimdt tenta mostrar em seu comentário ao pensamento de Hobbes que as estruturas da teoria política moderna são teológicas. Em sua análise a conclusão é esta: o Estado Moderno depende de uma teologia forte. Isso indica (ou deveria indicar) que mesmo com a ideia fetichizada de que “as coisas não devem ser misturadas”, elas efetivamente são misturadas – principalmente pelos “papas” da filosofia política. Nesse caminho, animado por encontros de estudo bíblico com adolescentes na comunidade religiosa que participo, pretendo trabalhar uma questão teológica “clássica” que foi resgatada recentemente de um modo um pouco mais empobrecido para expor uma insuficiência política – tanto das instituições religiosas quanto nas laicas. Contarei um tanto da minha própria história, pois vivenciei de perto o debate empobrecido sobre a intervenção de Deus na História.

Em 2004, quando houve o Tsunami na região do Oceano índico, um debate surgiu sobre a intervenção e a não intervenção de Deus nos acontecimentos da História. Uma parte impactada pelo desastre levantou a bandeira de que Deus não poderia ter relação com aquele acontecimento. A outra, preocupada com a tradição e, mais que isso, com as consequências de se tirar Deus do controle da História, colocou em pauta o dogma da Soberania de Deus. Lembro que em trocas de textos na internet se destacaram Ricardo Gondim (do lado da não intervenção) e Augustus Nicodemus (do lado da intervenção). De qualquer modo, em minha comunidade, tomei na época posição junto aos não-intervencionistas – digamos assim. O problema é que se “não-intervinha”, que fazemos agora? Em que teologia estamos firmados? Em que cremos?

E aqui começa o furdúncio. Me deparei de novo com esta questão no encontro de estudos bíblicos com os adolescentes da minha comunidade. São adolescentes, como eu era, só que, diferente do meu caso, eles não tomaram posição imediatamente. Abriram as duas hipóteses e a complexificaram: se Ele não intervem, o que fazemos com o Cristo? Se ele intervem, o faz em que medida e como? São bem mais espertos e fiéis do que eu era na idade deles…

O nosso problema na época foi tomar posição sem pensar e começar a acelerar, sem nunca olhar para trás e refletir, realmente, sobre o que nós estamos fazendo e no que nós, como comunidade, cremos. As respostas, poucas, quando tinham, eram individualizadas. Eis um problema: havia um debate, mas apenas havia tomada de posição, sem efetivamente um diálogo, uma construção coletiva. Não havia uma assembleia para a produção de teologia ou até troca de experiências de fé. Apenas a negação de que Deus intervinha na História. Havia argumentação, mas não crítica e nem diálogo produtivo. Operavam-se logicamente argumentos, mas não se produzia conteúdo. Assim, a questão não  saía de si mesma, pois:

I. Doutrina

O grupo dos não-intervencionistas procurava superar a doutrina; mas não sabia como e nem em que se firmar. Apenas negavam logicamente a intervenção divina. Então contas como “se Jesus é a Imagem e o Filho de Deus e Deus é amor, porque mataria pessoas?” eram realizadas e realmente deixavam os “opositores defensores da doutrina” de saia curta; mas não resolvia o problema e nem saciava a necessidade de pão que nós, como fiéis, temos. Muitas outras perguntas e estruturas lógicas eram feitas, mas nenhuma produtiva. Isso indicava algo importante: só é possível desenvolver uma argumentação se os dois que falam tem os mesmos pressupostos e estão no mesmo “chão”. Sem isso, não há conversa. Pois bem: o grupo não-intervencionista criticava a doutrina, mas não conseguiu superá-la: tinha os mesmos pressupostos!

II. Pressupostos

Como não houve reflexão, debate aberto, conversas produtivas e construções coletivas, os pressupostos foram mantidos e não percebidos. Tanto um grupo quanto outro não superaram um problema: “onde Deus está?”. Tanto para um quanto para outro (mesmo que neguem) trazem consigo a crença de que há fora da História um ser divino que olha “para cá”. Nesse sentido, uma das soluções dos não-intervencionistas era dizer que Deus interpela pelos e para os humanos, mas não intervem. Quer dizer, Ele está assistindo e “torcendo” pra gente, mas não faz nada. Outra frase-pronta como tentativa de produção era dizer que “Deus chora com a dor dos humanos” – mas também não faz nada. Se faz, já fez: enviou seu Filho ao mundo – Cristo. Mas aí travamos: o “enviou ao mundo” mantém o Deus que está lá e o mundo que está aqui.

Outro pressuposto que sustenta as duas correntes é o individualismo: um Deus individual que se revela ou chora ou interpela para indivíduos humanos. Egoistamente, a saída para Deus participar da vida humana era na vida do indivíduo humano, em suas experiências interiores, alegrias e momentos com o círculo de amigos e conhecidos. De um lado, o individualismo era ufanista: “sou salvo e Deus cuida da minha História!”; do outro, era depressivo: “Deus chora comigo e se apresenta nos momentos felizes que acontecem nos meus dias”. Mas os dois estão no mesmo chão. Se os pressupostos não são alterados, os significados daquilo que dizemos e cremos também se mantêm ou, no mais, ficam estéreis.

III. Processo de ressignificação

Era necessário um processo de ressignificação: aceitar as duas (ou mais possibilidades) e vasculhar o que está por trás de nossas crenças. Alterar isto renova o Espírito (em teologia) os laços comunitários (em política). O processo de ressignificação não dependia única e exclusivamente de uma argumentação lógica, mas da transformação das bases materiais – do motor duro e concreto da vida. A política das duas correntes religiosas estava em xeque e nenhuma percebia. Estava em cheque a organização produtiva da teologia e o modo como ela deve operar: Continuar lendo

A Bíblia Política: penúltima parte do comentário a Miquéias

alfonsin_claima20101125_0152_8Nossa busca pela Bíblia política chega ao penúltimo passo. Em 5 partes, fizemos uma leitura comunitária que nos possibilitou produções muito ricas e diferentes das tradicionais. O próprio exercício pedagógico, o modo como realizamos os encontros e as interpretações, é revolucionário por si só: a participação ativa e contínua de todos os leitores, com contribuições críticas e abertura das possibilidades que surgem em cada trecho, supera a relação especialista-leigo, líder-massa. É uma experiência democrática. Isso requer que analisemos o que aconteceu para tentarmos reproduzir, de algum modo, e transmitir esta experiência para outros – ou seja: teorizar. Mas, neste momento, faremos nossa última interpretação do texto de Miqueias propriamente, deixando para o próximo uma avaliação crítica do que aconteceu

Assim, nosso penúltimo comentário está dividido em 3 partes: 1. Retorno ao necessário possível (depois de colocada a utopia como um momento metodológico do pensar no trecho anterior, Miqueias retoma a necessidade de se organizar para solucionar os problemas atuais, que estão acontecendo); 2. Plano de luta (veremos a arquitetação de um plano estratégico para superar a opressão realizada pelos líderes corruptos); 3. Resposta aos que questionam a luta (como se houvesse quem discordasse da necessidade de se colocar contra a corrupção e opressão, Miqueias lança mão da Palavra do Senhor, que traz a tona a memória do povo, em sua vida e processo de libertação, em todas as histórias em que foram escravos e, com a luta, puderam se libertar).

RETORNO AO NECESSÁRIO POSSÍVEL

“Agora, porque  gritar tão alto? Você não tem rei? Morreu seu conselheiro para que tua dor seja tão forte quanto a de uma mulher em trabalho de parto? Se contorça em agonia, povo da cidade de Sião, como uma mulher em trabalho de parto, porque agora terá que deixar seus muros para habitar em campo aberto. Você irá para a Babilônia e lá será libertada. Lá o Senhor a resgatará da mão dos seus inimigos. Mas agora muitas nações estão contra você. Elas dizem: ‘Que sião seja profanada e que isso aconteça agora, diante de nossos olhos!’. Mas elas não conhecem os pensamentos do Senhor; não compreendem o plano daquele que as ajunta como feixes para serem colhidas […] Reúna as tropas, cidade murada! Há um cerco contra nós. O líder de Israel será ferido no rosto com uma vara” [Miqueias 4:9 – 5:1]

Em nosso comentário anterior, vimos que Miqueias utilizou do método utópico: vislumbrou como deveria ser o mundo – sem corrupção e violência, plural e produtivo. Miqueias não faz desse modelo um “horizonte” ou “alvo”, mas uma possibilidade que nos ajuda a reconhecer o que está errado “por aqui”. Ele toma posição de um não-lugar para reconhecer as falhas de seu lugar. Este método utópico ou a utilização da utopia como passo metodológico para um “plano estratégico”, segue para o trecho acima, no qual o profeta levanta a cabeça e olha em volta: a cidade está sofrendo, as lideranças são frágeis e inimigos estão a espreita.

Miqueias percebe que Sião não resistirá ao ataque: está corrompida e corroída por dentro. Assumindo a impossibilidade de “vencer esta batalha”, estrategicamente para a libertação do povo (não de um ou outro escolhido, mas do Povo – para saber o que significa esta palavra, dê uma olhada no nosso segundo comentário), Miqueias propõe que a cidade deva ser deixada; terão que largar a segurança do monte par ao campo aberto. Serão levados para a Babilônia. A crise, o  sofrimento de ter que reconhecer a fraqueza e honestamente assumir a fragilidade e a impossibilidade de se lutar contra tudo e todos ao mesmo tempo, não é um problema, mas um acontecimento. Para certos “fins”, acontecimentos imediatos, não se tem o que fazer. Então, no plano de luta de Miqueias, o combate direto é impossível, pois é necessário reconhecer que não temos o que fazer: teremos que largar mão da segurança e mergulhar na crise; mas juntos, como povo.

A crise é aceita e as fraquezas internas também. A “cidade utópica” não foi esquecida e nem é o horizonte a ser alcançado. Miqueias deseja alcançar a libertação do povo, apenas. O Povo é um sonho maior que a cidade. A Sião e a Jerusalém como Terra Prometida possibilitaram reconhecer que a cidade em que estão é fraca, corrompida e doente. Teremos que sair… Este é o plano!

PLANO DE LUTA POSSÍVEL Continuar lendo