Independência ou morte? Mais uma crítica à academia filosófica brasileira

independence_of_brazil_1888Ontem, antes de começar uma aula magna com o Jessé Souza, conversava com um parceiro de mestrado sobre os nossos estudos, os vícios e complexidades da academia, coisas boas e fardos que temos que carregar. De todo modo, entre umas risadas e outras preocupações, ele bateu amistosamente no meu ombro e disse: “boa sorte…”. É verdade, vamos precisar. Por quê? Porque se já é difícil o trabalho filosófico para quem estuda a filosofia costumeira, que dirá quem se arrisca numa “coisa” como filosofia latino-americana? Quantas vezes já não tive que ouvir e quantas muitas ainda ouvirei o clássico “mas isso não é filosofia”. Será que nós seremos o reduto desse tipo de conservadorismo? Se opto por dizer que estudo filosofia da libertação, tenho que ouvir “mas pobre não é categoria filosófica!” – e, claro, “Deus” ou “alma” são…

Mas minha preocupação é menos com a aceitação da filosofia latino-americana ou de libertação pela academia e muito mais com nossa falta de autonomia; ou melhor, de independência. Fico indignado quando dizemos e sustentamos que não existe filósofo no Brasil ou que não é preciso existir uma filosofia brasileira – como se não houvesse diferenças de pensamento, produção e necessidade em cada esquina do mundo. É cansativa a inércia e a falta de tesão por produzir conteúdo, por trabalhar filosoficamente, por ser-no-mundo aqui e agora – com toda a malandragem possível dessa expressão -, distantes da floresta negra. A produção de conteúdo nas ciências sociais como de um Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan, Milton Santos, Faoro, Antônio Candido, Roberto Schwarz, Octávio Ianni e por aí vai até o Paulo Freire como intelectual brasileiro mais influente e lido no mundo, não pode ser isolada e deixada de lado como não-material a ser trabalhado filosoficamente. Não podemos simplesmente cogitar (com toda a malandragem possível, novamente) que o que era para ser feito em filosofia, já está pronto. Jamais desenvolveremos nossos sistemas significativos de justificação, jamais trabalharemos criticamente nossos problemas.

O livro de Jessé Souza A tolice da inteligência brasileira bem que poderia ter sido escrito por um filósofo de formação acadêmica. Mas seria impossível, pois na universidade brasileira filosofia só trabalha o que é “estritamente filosófico” – seja lá o que isso signifique. O trabalho intelectual sobre as questões brasileiras tem que correr para outras salas, minimamente mais abertas e arejadas, onde é possível questionar o sujeito, pensar categorias a partir da rua de uma cidade brasileira, dos acontecimentos e experiências duras, concretas e vivas da cotidianidade social, histórica, política e cultural dessa terra. Uma das discussões centrais no livro de Jessé é a crítica à separação ontológica e à hierarquia corpo-espírito presente nas estruturas intersubjetivas e promovidas pelas instituições político-sociais do e no Brasil, com suas singularidades e peculiaridades. Não é material para a filosofia? Jessé resgata Freyre e Sérgio Buarque fazendo críticas metodológicas e conceituais aos autores, abrindo janelas teóricas e possibilidades a serem avançadas e aprofundadas. Em filosofia seria um prato cheio. É possível? Em nossos locais convencionais de trabalho, parece que não.

Não dá para entender como fechamos nossos olhos para a construção histórica do pensamento no Brasil: nascemos da colonização, somos filhos da escravidão. O que temos de conteúdo, o modo como trabalhamos racionalmente nossas questões, está tudo carregado de colonização! Nós precisamos, sim, nos libertar! Isso não significa abandonar os autores, tradições e conteúdos vindos de fora; significa não baixar a cabeça em submissão, sem crítica, sem questionamento, sem grito, sem assumir que as condições materiais interferem diretamente nas possibilidades e no tipo de produção de conteúdo. Para a filósofa libertar a filosofia de seu machismo, tem que assumir que sofreu com o machismo filosófico. Para o filósofo negro libertar a filosofia do racismo, tem que assumir que há racismo filosófico. Para o filósofo brasileiro libertar a filosofia de sua colonização (seja colonizadora ou colonizada), tem que assumir que seu pensamento (e sua história) foi colonizado.

O grito por independência do pensamento não destrói ou aniquila a tradição – seria impossível -, mas firma um marco crítico que exige constante vigia e cuidado. É assumir que há um colonizador em nós que nos impede constantemente de ver as correntes, nos condiciona a achá-las boas, nos trava, oferece uma frágil segurança para evitar a certeza da crise. É quando a gente tem que escolher se vale mais ficar na casa grande ou receber um “boa sorte” porque a empreitada será difícil. Teríamos que assumir nossa história, reconhecer que somos filhos do estupro, que não há cultura sagrada, está cheia de sangue e que será com esse material que trabalharemos filosoficamente produzindo “mundo” no mundo.

Não é que Descartes ou Kant são grandes cretinos que planejaram destruir nossa vida. Sem ingenuidades. É que exatamente a estrutura que promoveu a colonização estava sustentada em ideias instituídas. Quem colonizou não colonizou sem pensar, crer e ter certeza racional e justificada de que deveria ser assim. Como Aníbal Quijano escreveu: “Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação colonial europeia, se foi constituindo o complexo cultural conhecido como a racionalidade/modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Esta contemporaneidade entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade/modernidade não foi de nenhum modo acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”. Não é coincidência; faz parte de uma produção social, política, histórica e cultural. Só. Continuar lendo

Sacrifícios e atividade política

USA. God, Inc.

Cada dia que passa a o que Carl Schmidt concluiu a respeito da política moderna se torna mais certeira: o Estado moderno é estruturalmente teológico. Dogmas, ritos, entidades supremas, hierarquias ficas e a eterna disputa pela “legitimidade” (quem é eleito como o “certo” de acordo com a vontade divina). Mas Schmidt entendia “política” como atividade exclusiva do Estado – sua conclusão parte da leitura do Leviatã, de Hobbes. Mantendo a ideia, mas sacando política como atividade do “Estado ampliado”, incluindo a ação dos sujeitos envolvidos enquanto cidadãos, como propõe Gramsci, por exemplo, uma estrutura teológica também explica bem nossa recente experiência política brasileira. Pelo jeito, a velha formulação de Marx em que “a crítica teológica é a primeira crítica política” vale muito

Nas aulas de Temas de Filosofia Política que estão acontecendo lá no mestrado nesse quadrimestre, temos discutido bastante a relação Psicanálise-Política para entender a ação dos sujeitos: porque agem ou não agem de determinada maneira em suas situações. Quais seriam os mecanismos de controle do “aparato psíquico” dos sujeitos e quais as possibilidades de saída, de libertação. Mas o interessante aqui é: mesmo que sejamos controlados, regrados, disciplinados e tudo mais, as pulsões contidas vão para algum lugar. Na Psicanálise, nos referimos comumente à sexualidade. Aqui, vamos dar outra roupagem para ajudar na troca de ideia: aquilo que movia os rituais públicos de antigamente também acaba escoando para algum lugar! Religião (apesar de ser jogada como uma eleição ou preferência privada) sempre foi experiência comunitária e pública: eram momentos corporais de excitação ou sofrimento em conjunto experienciados e praticados em cultos. Assim, mesmo que a prática institucional seja confinada no campo “privado”, aquele, digamos assim, impulso religioso que é público e comunitário não se confina e nem se isola nas quatro paredes de uma igrejinha na esquina, num terreiro, casa ou templo.

Sacrifícios eram (ou são) rituais públicos em que toda a comunidade se envolvia. Eram práticas primordialmente religiosas, mas tinham caráter e implicações políticas, sociais, econômicas e culturais. Como René Girard mostra, toda a tribo ou comunidade participava ativamente da experiência; no desespero por um bom ano ou para pagar uma dívida com o divino, o mais puro era escolhido como oferta aos deuses em troca de segurança para um tempo na vida. Esse era um tipo de sacrifício: de purificação ou pureza. O intuito era manter segura e estável a vida comunitária. Mas também havia outro tipo de sacrifício: o de raiva-vingança. Quando a comunidade estava irada com uma situação ou com um considerado excessivamente culpado, sacrificava este sujeito para apagá-lo da terra, superar o mal. Era o sacrifício mais violento, impetuoso. De qualquer modo, havia sacrifícios; prática comunitária, religiosa e política.

Pois bem, não temos mais o rito sacrificial público. Quando se é exigido algum tipo de oferta, ela é individual, de auto-flagelo, quase que uma religiosidade liberal: cada um cuida do seu e faz o que quer com ele. Mas a experiência ou o impulso que culmina nesse ritual público não encontra mais sua “casa” oficialmente. E ele vai para onde? Para algum lugar…

Jung Mo Sung e Fraz Hinkelammert trabalham muito a questão do sacrifício. Um dos pontos centrais é: o Mercado exige diariamente sacrifícios humanos para sua manutenção, que são tolerados e como a garantia do bem de todos. São nossos sacrifícios de purificação modernos: a morte e o sofrimento dos marginalizados pelo Mercado e dos oprimidos por trabalhos insuportáveis é visto como efeito colateral, como paga para a aposta de futuro melhor e garantia da vida segura e minimamente estável de agora. Como diríamos: “pimenta no ¢* dos outros é refresco”. Esse sacrifício não rende muita polêmica ou atenção: ele é fruto de desespero, total falta de esperança. É costume indiferente que assumimos como parte da vida e como a atitude que nos garante a continuidade da própria vida (ou do próprio sistema em que vivemos). É o sacrifício de purificação: uns pobres coitados inocentes acabam tendo que morrer para fazer a roda girar.

Mas o sacrifício de vingança, esse sim, ganha capa de jornal e torcida. Uns contra, outros a favor dos sacrificados, o momento do show segurando a tensão e a excitação para o clímax e a urgência do final horroroso faz nascer na boca do estômago dos participantes do rito a necessidade da morte. Tem que haver vingança, o mal deve ser estirpado. Qual mal? Aquele que parece estar num único sujeito. No fundo, a vingança não apaga o mal, mas o sacrifício dá a sensação de que ganhamos mais um tempo aplacando a ira dos deuses. O pecado foi resolvido com a morte de mais um que merecia.

O problema é que o mal continua; e o próximo sacrifício de vingança já entra na história em potência. O de pureza ou desespero está acontecendo todo dia, a todo instante. E a vida política caminha acriticamente repetindo os ritos sacrificiais sem saber o que está acontecendo e nem se deveria acontecer. Nossa vida política está praticando esses sacrifícios: condescendente com a morte, ativista da vingança. Uma das loucuras é que nada está sendo efeito  pelos adoradores; todo o esforço e performance é realizado pelo sacerdote, seus auxiliares, talvez o “chefe” e alguns figurões. O povo, os fiéis, apenas assistem. Não se sentem representados pelo sacerdote, pelos auxiliares ou pelo chefe, mas se sentem eles próprios estes atores – e não o são!  O povo é no mínimo torcedor; no máximo a faca que imola a vítima do sacrifício: pois é só com a permissão e desejo dele que um sacerdote teria coragem de meter a lâmina na garganta de alguém. Continuar lendo

2016: Amanhã não será maior, nem melhor

wallNão sejamos pessimistas. Apesar do título, esse não é dos textos catastróficos e depressivos. Não! Na verdade esse deve ser o primeiro texto efetivamente esperançoso escrito nesse blog. Sem dúvida é um texto desiludido. Não é ufanista e nem animador (no pior sentido que essa palavra possa ter). Estamos longe de propor um efeito “motivacional”. Seria tosco, leviano, pecaminoso, ofensivo e irresponsável prometer um dia de sol no meio de um dilúvio. Esse é um texto de esperança. Não qualquer esperança. Esperança de verdade

No prefácio ao terceiro volume da sequência de Porque pensar não é pecado, escrito no final de 2013, mencionei o grito que vez por outra soltávamos nas manifestações de julho daquele ano: “amanhã será maior, amanhã será melhor”. Na ocasião comentei que era óbvio que nós, manifestantes, sabíamos que não seria melhor e nem maior necessariamente. Mas, de qualquer modo, nos agarrávamos ao chavão como grito de esperança. Quer dizer, achávamos que aquilo era esperança. Não era. Era uma crença – um “torcer pra dar certo”. Um ânimo sonhador e valente, mas ainda muito imaturo e infantil. Poderia ser, talvez um grito de “desejo”, mas não de esperança. Esperança de verdade não ousa gritar sobre o amanhã. Esperança de verdade não fala sobre a passagem do “tempo” cronológico, mas sobre um lugar…

Nem maior e nem melhor. O grito era certo; mas não expressava esperança, apenas nosso desejo. E cumpriu com seu papel: saciado o desejo, findou todo o movimento. Se fosse esperança de verdade, não morreria. Esperança não é apenas a “última que morre”; ela nasce da experiência com a morte, ela nasce junto ou talvez até da morte. Esperança não é um acreditar no progresso e melhoria do amanhã. É uma qualidade de nosso trabalho. Esperança é trabalhar ou projetar com os materiais disponíveis e a partir daquilo que já se foi, sobre o chão que está sob nossos pés, nossa história, nosso castelo. É esperançoso o vivente que constrói uma nova casa apesar de ter visto aquela em que morava ser destruída por um incêndio. É esperançoso quem tem filhos apesar de ter visto a morte dos próprios pais. É esperançoso o desejo de produzir a vida mesmo sabendo como é o trabalho de parto.

Comblin dizia que esperança não é sensação ou sentimento, mas qualidade da ação. Esperança não é o frio na barriga por acreditar no melhor ou maior de amanhã. Isso é desejo, ânimo, expectativa, ansiedade até. Pode ser, sem maldade ou sentido negativo, uma ilusão. Esperança é qualidade de nossa ação: o modo de realizar projetos. Mais que isso: o que é transmitido àquilo que produzimos com nosso trabalho cotidiano. Somos trabalhadores. Trabalhar é gastar energia para lutar contra a perda total de energia: se matar para não morrer. O trabalho pode ou não ser esperançoso. O que determina não é a sensação enquanto se trabalha; mas a consciência do lugar em que se está trabalhando: os limites, os materiais disponíveis, a história do trabalho passado. Esperança depende de um processo de conscientização.

Não é o grito! É o processo de conscientização. Esperança exige maturidade – até um pouco de rudeza, de ser casca grossa. Conscientização não é saber o que está acontecendo, estar ciente do mundo. Conscientização é, como Paulo Freire aprendeu-ensinou, um modo de agir no mundo: “não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão […] conscientização é um compromisso histórico: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece”. Esse é o processo de conscientização que possibilita a verdadeira esperança: permite que o trabalho seja ou não esperançoso, produtor de esperança. Continuar lendo

Guerra: quando a Política acaba

BAB1971021W00011/07Esta é uma crítica teológico-política. Marx já lembrou a gente que a crítica teológica é a primeira crítica política. Também podemos inverter: a crítica política é a primeira crítica teológica. Dizer que é uma crítica teológica não significa que falaremos de Deus. Significa que falaremos de “crenças”: de estruturas significativas que não tem outro lugar a não ser a experiência da relação humana, do “entre nós”. Dizer que é uma crítica política não significa que falaremos da guerra. A guerra começa quando a política cai. Significa que falaremos de todos os caminhos para impedir a guerra. Se a guerra começa, seja ela santa ou não, é porque a política e a teologia foram deixadas de lado: se tornaram ferramentas nas mãos de arquitetos sem escrúpulos

Aqui começa a guerra: quando o “entre nós” ficou entupido de lixo. Quando o vazio que há entre dois sujeitos se encheu de sedimentos. Quando não há mais espaço para a vida; quando não há mais tempo relacional. Quando um ou outro suprimem o que há de mais importante: o entre. Aquela abertura que era para ser “vazia” de coisas e cheia de vida cai; deixa de ser fundamento para a produção de instituições, decisões, da própria vida, e passa a ser um “meio”. Um ou outro se toma a si mesmo como fundamento, e o “entre” é suprimido para dar lugar à guerra. O vazio é preenchido por canhões.

O buraco do tamanho de Deus que Agostinho dizia ter no coração não ficava dentro dele. Esse buraco, esse coração, esse vazio do tamanho de Deus, é o espaço entre um e Outro – entre o Eu e o Próximo. A referência, o ponto de partida, é este sem lugar que há no “meio do caminho”. Sem lugar tem uma palavra específica: utopia. É o espaço verdadeiramente público: não um espaço social, que pode ser ocupado, desocupado, invadido, construído, destruído, possuído… É público: não pode ter dono. A experiência ética e a prática política são os campos que nos permitem tentar manter esse “espaço”. São possibilidades para (nas palavras de Dussel) a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana.

Vida humana tem um caráter peculiar: é a única que permite essa experiência entre sujeitos, sustentada no “nada” – nada além do nós mesmos e nossas crenças, significados e justificativas. Sem esse espaço do “nada”, tudo pode ser tocado, possuído. Na disputa, a Guerra se torna iminente! Não há mais o “sagrado”. Porque? Porque tudo pode ter dono, até o espaço entre um e Outro. Não há mais Próximo, porque este é substituído pelo “Meu”. Próximo é aquele que sempre está perto, mas nunca se identifica comigo ou conosco. Próximo é o que está com a gente, mas ao mesmo tempo tem um espaço de distância. Não é um “nós” pleno; é um próximo. O “nós” pleno, sem espaço, é justificativa última da Guerra. Ele pode vir travestido de “eu”, também – mas não tem tanta força. O “nós” não-pleno, ou melhor, o “nós” simplesmente é o verdadeiro: aquele que se une, mas mantém a separação entre um e Outro. Respeita a autonomia. Possibilita a “liberdade”.

Liberdade, de acordo com Enrique Dussel, é a possibilidade de manejar o máximo possível de mediações que possibilitem a vida – a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana. Não a minha ou a “nossa plena”; a vida humana, simplesmente. A vida humana, e “nada para além”. O campo que produz essas “mediações” é a Política. A formação de instituições que realizem e permitam e preservação do “espaço público”, o entre nós, depende de uma ação e construção Política. Política não é Guerra: Política é a resistência àquilo que procura dominar o “fundamento”, o vazio, o nada entre nós, o nada que origina o modo de viver propriamente humano. Continuar lendo

Do homem ao Estado

LeviatãTive uma intuição certa, mas o caminho que tomei para trabalhá-la foi equivocado. Escrevi um texto em Abril chamado Crise da Democracia? Não! Do Sujeito. A ideia era simples, sem grandes novidades. Mas, ao mesmo tempo, útil. O que tinha colocado nesse texto era que dependendo de como compreendemos “o sujeito”, entenderemos o funcionamento do Estado ou da política. Boa intuição; mas equívoca. Falar do sujeito é manter uma estrutura distante, pouco prática, descolada do cotidiano. Pode ser bom no trabalho de filosofia “estrita” (construção de categorias), mas no conteúdo político, um campo prático, cotidiano, material, não cabe a discussão meramente do sujeito. Estamos falando do homem!

Nossa constituição ou como nos entendemos concretamente, nossa antropologia, é nossa base material para a construção da política como atividade e do político como conteúdo. Claro, não é apenas a “constituição antropológica” que determina a política, exclusivamente. Uma série de campos se misturam, co-determinam, etc. Mas o homem, a base material, é fundamento, o que necessariamente precisamos para desenvolver produções humanas. O processo de conscientização, de saber quem se é e do que somos feitos, que acontece evolutivamente, em determinadas circunstâncias, em nossa espécie, sempre comunitariamente e nas relações e interações sociais, em continuidade com as experiências naturais, momentos intencionais e não-intencionais, vai constituindo a matéria para as produções culturais: nossa política, modo de trabalho, arte, religião, etc. O modo como nos entendemos enquanto seres humanos é base material para a estruturação política.

Base material tem dois sentidos: de conteúdo e físico. De conteúdo são as produções significativas, práticas, do dia-a-dia. Físico é o “bruto”, “natural”, biológico. Aqui nos interessa o material como conteúdo. O fruto ou produto de nossa conscientização – como nos entendemos enquanto humanos – é a constituição antropológica de que estamos tratando. Quando pegamos para ler O Leviatã, de Hobbes, por exemplo, o primeiro capítulo é intitulado: “Do Homem”. É preciso estipular a constituição antropológica material humana para justificar o funcionamento do Estado proposto em seguida, no segundo capítulo: “Do Estado”. Em Rousseau, preciso determinar o homem no estado de Natureza para justificar a origem da desigualdade e, depois, o modo de governo justo. Do mesmo modo Locke, que justificará a propriedade privada a partir do que é naturalmente o homem.

Na Política de Aristóteles, na primeira linha do livro I, está estabelecido que é da natureza de todo homem “agir de modo a obter o que acha ser bom”. Na primeira linha do livro II: “Quem, portanto, considerar os temas visados a partir de sua origem e desenvolvimento […] obterá uma visão mais clara”. Em seguida, explica a constituição natural do homem, da mulher e do escravo. Determina naturalmente a hierarquia entre estes e, a partir dela, vai justificando a organização política. É a partir das experiências concretas, dos conteúdos materiais, que se desenvolve e justifica a política: “A cidade-Estado é uma forma de associação natural, assim como eram as associações primitivas […] é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político […] mais político do que as abelhas ou qualquer outro ser gregário. A natureza, como se afirma frequentemente, não faz nada em vão, e o homem é o único animal que tem o dom da palavra”. Ou seja: o homem é naturalmente político, tem o dom da fala e está estabelecida uma hierarquia natural entre homens, mulheres e escravos. É a partir dessas determinações que Aristóteles construirá o Estado. Continuar lendo

Esquerda e direita: vamos organizar a discussão

De uns tempos pra cá, uma série de situações críticas e ações políticas acirraram posicionamentos ideológicos e intensificaram o uso dos termos “esquerda/direita”. Talvez por tradição, falta de novas categorias, paciência ou necessidade de atacar imediatamente antagonistas políticos, sei lá, a análise e as acusações bipolares reduziram debates, conversas e limitaram nossa capacidade de produção de conteúdo e propostas para soluções de problemas. Mas depois da prova do ENEM nesse fim de semana, em que questões que tocavam o tema do feminismo foram consideradas doutrinação de “esquerda”, temos que organizar a casa. Pior, quem se considera de “esquerda” comemorar uma questão feminista e se sentir representado por ela, também preocupa. Estamos nos reduzindo e reduzindo nossos debates

Assim, nesse texto a ideia é tentar propor uma “organização da nossa casa”. Ironicamente, é exatamente pela ordem ou norma da casa, economia, que precisamos começar a discussão. Uma das marcas do século XX é a “doutrina econômica”. A defesa ideológica de um livre mercado e diminuição do aparelho do Estado contra a defesa de uma planificação econômica e fortalecimento das instituições políticas, marcaram os blocos estadunidense e soviético: bem-vindos à Guerra Fria. É claro que a guerra não pode ser resumida a isso. Porém, a redução do debate ao modo como deve ser organizada a economia determinava, em última instância, se determinado grupo era de direita ou de esquerda.

Tanto direita quanto esquerda reduziam seu discurso à economia. A “doutrinação” das escolas de formação liberal-neoliberal e das escolas socialistas-comunistas restringiam o problema à economia. Nesse sentido, as duas discordavam do modo como se deve “organizar” o mundo, mas tinham um pressuposto comum: o que é o mundo. No caso, a economia.

Desse jeito era fácil determinar na década de 90 quem era “esquerda” e quem era “direita”. Estávamos girando tradicionalmente sobre o conteúdo econômico – e ele se confundia com o político. Nesse ponto, como leitor de Marx, preciso criticar a esquerda, que a-criticamente permitiu reduzir sua bandeira às questões de Mercado, considerando ingenua e erroneamente a política como uma “superestrutura” menos importante e a economia como “infraestrutura” fundamental – coisa que não faz sentido nenhum! Dogmaticamente produziu uma doutrina irrefletida e limitada, dando, inclusive, o braço a torcer para a doutrina econômica de direita…

Hoje as questões sociais, as discussões políticas, lutas por direitos e tudo mais não se restringem à economia. O “fim da história” de Fukuyama (que hoje voltou atrás em sua afirmação no início dos anos 2000) pode se tornar um marco interessante: com o fim da disputa econômica, na “vitória”  de um dos lados, parecia mesmo que os problemas tinham acabado. Não porque efetivamente não existiam mais, mas porque o excesso de olhares para a economia e exclusivamente para a economia limitaram o óbvio: no mundo há mais do que Estado e Mercado.

Guerras, direitos civis, questões religiosas, imigração, globalização e exclusão, as inúmeras disputas morais e mais uma infinidade de coisas surgiram, do nada, na nossa frente. O mundo não tinha chegado ao “fim”, mas nossa cabeça. O mundo “bipolar” limitado à economia não cabia mais. As coisas estavam complexas. Novos sujeitos, novos atores, novas gerações. Nosso século XXI. Nele não cabem mais as reduções, mas não desenvolvemos outras categorias que nos permitam entender o que é que está acontecendo e onde nos posicionaremos?

Nesse sentido encontrei em Dussel um marco categorial complexo, impressionante, cativante e profundo. Não necessariamente ele dá conta dos problemas, mas apresenta caminhos distintos dos tradicionais. Além da originalidade de posição a partir da América Latina, vamos tentar utilizar algumas de suas propostas para “organizar a brincadeira”. Não estamos mais falando de “direita e esquerda” reduzidas ao campo econômico. Falaremos de processos de libertação que se co-determinam simultaneamente em diferentes campos com diferentes atores. Continuar lendo

Teologia do poder corrompido

portinariEm alguns rascunhos de teologia antigos, encontrei uma proposta que hoje, mais madura, me é muito cara. O fundamento de uma teologia não é a “crença”, mas a experiência viva e necessariamente comunitária de fé. Vivemos determinadas experiências em comunidade, concretamente e em situações precisas, que se tornam a base, o chão, o firmamento do desenvolvimento teológico posterior. Aí, sim, entram as “crenças”. É depois de uma experiência viva, comum, cotidiana e encarnada que se desenvolve em forma de discurso uma teologia, uma sistematização de expressões de fé, dogmas, etc. Meu pai dizia: primeiro você se converte, depois vem alguém te dizendo o que você deve fazer ou repetir…

A experiência primeira de fé é comum, viva, espontânea e concreta. É a “epifania”, o momento místico cheio de emoção, corporalidade, concretude. Isso deveria ser o que nos firma. Logo em seguida aprendemos e/ou desenvolvemos um discurso teológico; afirmações de fé e dogmas. Assim, o que possibilitou nossa conversão não foram as palavras ou afirmações teológicas isoladas, mas a experiência comunitária viva, de verdade, corporal, dura, em um determinado dia e momento. A fé se funda nesse dia. Isso não se muda, não transforma. Mas o discurso, sim. A teologia que vem em seguida não é menos autêntica: ela só não é a “verdade” ou o fundamento da fé. Ela pode ser fruto, produto da vida concreta e real, da experiência que vivemos em determinado dia, mas nunca o próprio fundamento.

Quando o discurso teológico, as afirmações de fé, tomam a si mesmas como o fundamento da fé – como se fossem elas a causa de nossa conversão e não a experiência encarnada com o Cristo -, vivemos uma fetichização da fé: uma corrupção da experiência religiosa. Isso não desmerece uma em detrimento da outra; só devemos colocá-la em seus devidos lugares, suas posições. Enrique Dussel apresenta uma estrutura análoga: a experiência de fé encarnada é entendida como teologia fundamental (ou primeira), mas no processo de libertação do povo é necessário uma instituição mais complexa que se faça meio de possibilidade para a continuação da vida de fé. A partir de uma fé viva, é-se preciso uma vida de fé – e para que ela aconteça, são necessários meios: o desenvolvimento de uma Teologia estrita, em outras formas além daquela primeira, determinada.

O discurso teológico, assim, muda e se transforma enquanto são exigidos pela experiência de fé concreta e viva novos e outros meios que possibilitem a vida de fé. Os movimentos de renovação, reforma, revolução ou reavivamento na história das comunidades de fé cristãs podem ser entendidos dentro desta categoria: as experiências vivas de fé, concretas, reais, diárias e comuns da comunidade precisavam ou exigiam outros meios além dos que estavam à disposição para que a vida de fé prosseguisse. Era necessário produzir, criar, nova instituição: em forma de rito, discurso, música, igreja… Assim como na vida do sujeito de trabalho vivo em Marx precisa produzir meios que possibilitem a reprodução e continuidade da vida, a experiência de fé viva precisa produzir meios que possibilitem a vida de fé.

O subtítulo do livro As obras do amor, de Soren Kierkegaard, é “algumas considerações cristãs em forma de discursos”. Isso já ensina para a gente bastante coisa: o discurso é uma forma,  não o conteúdo. Kierkegaard propõe em sua filosofia o “além”: uma exterioridade que excede qualquer totalidade de um sistema. Seja discurso, seja parede, seja música, seja experiência científica… Há uma excedência que constitui verdadeiramente o conteúdo. A vida é o conteúdo, o fundamento último. As considerações posteriores são meios que possibilitam a reprodução do sujeito que vive – seja religiosamente, produtivamente, politicamente, etc. O discurso é importante e crucial; porém não é o fundamento. Assim como a igreja, o culto, uma música, o Estado, a escola, o mercado… São  meios, são formas, mas não fundamentos.

Precisamos ter isso bem claro em nossas experiências cotidianas. Tomar uma instituição como fonte, fundamento, é corromper a experiência viva e da vida: fetichizar as experiências, subjugar os sujeitos à religião, à política, à pedagogia, à economia. Estas instituições são meios para os sujeitos; não o contrário! Continuar lendo

Aos 26

2626 de agosto, 26 anos (apesar da cara de 17). Um dedinho a mais que 1/4 de século. Não sou capaz e nem estou pronto para “aconselhar” ou dizer que sei alguma coisa sobre a vida. Tudo o que falo, tenho plena consciência de que está bem delimitado em mim e nas minhas experiências próximas. Comecei a ter a sensação de que consigo reconstituir minha história de maneira diferente, reorganizar meu passado. Mas só. Isso é bom. Cai a máscara de “maduro”, entra a de “adulto”: não posso direcionar sabiamente a vida de Outro, mas sei onde a minha está fincada. Hoje sei em que chão meus pés pisam; e é este chão que venho compartilhar…

Ano passado, antes de completar 25, vivi intensamente crise: frustrado por não conseguir acelerar minha independência financeira e me estabelecer profissionalmente, e desiludido com os espaços que me constituem – igreja, universidade, escola, família. Ouvi uma música que dizia: “Há 10 anos eu planejava conquistar o mundo, 10 anos se passaram e eu não conquistei […] Não imaginava que chegaria aos 26 sem norte ou sul”. O som bateu. As pernas tremeram. Tive medo de chegar assim nos meus 26. Frustrado, desiludido… Com medo de perder até o encanto: a paixão pela filosofia, o amor por minha comunidade, minha vocação e a fé. A única segurança que eu tinha: gente.

Meu avô me ensinou uma coisa rara e para mim muito cara: “quem tem amigos não precisa de dinheiro”. É verdade. Tomei chacoalhões de irmãos. Fui cuidado. Lutaram comigo e por mim. Devo muito à minha casa, ao meu irmão-mais-velho e à minha linda magrinha. Eles me constituem. Devo muito a companheiros e companheiras que cuidaram e cuidam de mim sem nem eu saber. Acreditaram mais em mim do que eu mesmo. Esse é o fundamento primeiro do chão que eu piso: eu sou, porque nós somos. É ubuntu, que quem me ensinou a viver e entender foram outros dois irmãos-reis: Jarino Junio e Pedro Conceição. Gente que me constitui como sujeito. Não somos isoladamente; só somos em relação. Nasci dependente de mãe, pai, família e casa. Fui dependente de professores, amigos, mestres, comunidades… Gente que me construiu, me constituiu, me ajudou e ajuda a me tomar como sujeito, como pessoa.

Somos, sempre, em comunidade. Dussel define sujeito como sendo sempre intersubjetivo: só é em relação e comunitariamente – não existe gente que vem “do nada”. Sempre vem de alguém. Os chacoalhões, as caminhadas, as conversas, o cuidado e o carinho encheram e enchem o espírito. Força nova, vida nova, outro combustível – sem preço! Comecei uma pós em Ciência Política. Prestei processo seletivo no Mestrado para Filosofia Latino-Americana. Segundo fundamento do meu chão: nossa paixão precisa ser útil para a comunidade em que vivemos. Tive fôlego porque vi que alguém apostava em mim e, do mesmo modo, meu trabalho deveria se direcionar, sempre, para alguém. Nossa produção não é para nós mesmos, mas sempre para alguém. Minha linda magrinha me inspira e me motiva. Quero ser um presente para minha casa. Quero ser útil para minha comunidade, meu povo. Estou estudando Dussel, com a paixão pela filosofia firme, porque tenho o dever de produzir algo que possibilite a vida dos meus, dos outros. Como Dussel disse: “ser útil é uma relação”. Continuar lendo

“O político”: trecho do projeto

 10568902_770775982960838_6013329346446243723_nO intenso e delicado momento do Brasil – de eleições conturbadas, escândalos de corrupção, manifestações sociais, greves, debates sobre reformas políticas, representação e legitimidade do poder – tem colocado em evidência e recorrentemente trazido à mesa as discussões sobre o político e a política. Se por princípio não se pode determinar que algo “está errado”, pode-se, pelo menos, afirmar que algo está acontecendo. A partir desse ponto, resta responder qual o fundamento disso que está acontecendo – e o lugar onde nos posicionaremos para trabalhar a questão é de suma importância

Em Enrique Dussel encontramos a tese central de que a fundação ontológica da crise do político é a fetichização do poder. Esta fetichização é origem do entendimento do político (conteúdo) e da política (atividade) como dominação e como corrupção. O autor comenta que o “conceito do político supõe primeiramente a descrição ontológica do poder político, conceito que passa inadvertido e que na Modernidade se identificou frequentemente com a dominação”. Esta dominação é fruto de uma corrupção originária: quando os executores do poder (que, como veremos, será explicitado por Dussel com a determinação de potestas) tomam a si mesmos como fonte do poder (que, por sua vez, será, na verdade, a comunidade política determinada como potentia) – o que caracteriza a chamada fetichização. O resultado é: “fetichizado o poder delegado […] toda outra corrupção é possível”.

O desenvolvimento teórico que conduz a essa tese tem como ápice de sua sistematização a obra Política de la Liberación, dividida em três volumes: Historia mundial y crítica, Arquitectónica e Crítica – sendo que o terceiro ainda não foi publicado. O primeiro volume procura compor um novo paradigma histórico para a filosofia política. O segundo, por sua vez, procura descrever ontologicamente o fundamento do poder político. Em seguida, a pretensão é que se critique o que fora construído anteriormente. Por nossa parte, situar-nos-emos no momento metódico de explicitação dos fundamentos do político – desenvolvido no segundo volume da obra.

“É tempo de descolonizar a cabeça” – assim o filósofo latino-americano dá início à primeira aula do curso de filosofia da libertação na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), em 28 de janeiro de 2015. A conhecida e cada vez mais pesquisada crítica à filosofia europeia construída por Dussel, com seu método analético de filosofia, propõe que a exterioridade do sistema hegemônico seja o ponto de partida – tomada de posição que caracteriza a filosofia da libertação. Deste modo, tomando os rumos gerais do método, para compreendermos o que está acontecendo não devemos lançar mão das categorias do próprio sistema – ainda mais na questão do político, pois, como vimos, seu conceito passou inadvertido pela Modernidade enquanto compreendido como dominação. Mas, posicionando-nos para além dele, faz-se possível a explicitação de seu fundamento e sua articulação, abrindo caminho para uma crítica direcionada, efetiva e concreta.

No “Prólogo” ao segundo tomo da Política de la Liberación, Dussel escreve:

“Nesta Arquitectónica, exporemos de maneira abstrata e como introdução ao volume da Crítica de maior complexidade, mais concreta, uma descrição fundamental, ontológica, dos momentos que têm relevância para uma política global, planetária, por sua vez observada de modo especial a partir da periferia, do Sul, e particularmente desde a América Latina. Será toda uma implementação do poder político, que irá ocupando o campo político até chegar ao final […] havendo dado conta suficientemente, levando em consideração os momentos necessários, de uma “ordem do político vigente” , anterior, de maneira abstrata e sem contradições ainda; sem conflitos, metodicamente postergados para a seção seguinte da Crítica.”

Seu propósito, portanto, neste momento arquitetônico, é descrever os fundamentos do político de maneira complexa, necessária, mínima e suficiente – momento abstrato de descrição ontológica. A disposição das categorias que constituem o político permitirá a compreensão de sua crise: sua corrupção originária e o entendimento fetichizado do poder como dominação. Além disso, no passo metodológico seguinte, a crítica concreta da libertação encontra caminho aberto. É o processo de “ascensão do abstrato ao concreto” – expressão que Dussel empresta de Karl Marx.

Interpretando criticamente os Grundrisse, Dussel encontra o seguinte quadro: “Marx pode ver com novos olhos, pode criticar o próprio ser do capitalismo […] a partir de uma exterioridade prática que lhe exige explicitar para os oprimidos uma teoria que explique aos trabalhadores o fundamento de sua alienação”. Isso significa que, para Dussel, Marx pôde construir um novo sistema de categorias que permitia explicitar o fundamento escondido porque tomou posição de exterioridade ao sistema capitalista – posição dos trabalhadores, alienados. Tendo-o feito, possibilitava a crítica ao próprio sistema.

Do mesmo modo, o filósofo latino-americano estabelece que, guardadas as proporções e a analogia epistêmica necessária, faça-se o mesmo quanto à filosofia política. Então, como citado, é necessário nos posicionarmos a partir da periferia – a América Latina, o Sul como exterioridade, como possibilidade crítica ao poder como dominação e à corrupção originária. Deste lugar de exterioridade, devemos observar a “ordem do político vigente”, descrevendo ontologicamente suas determinações, suas categorias articuladas, seu fundamento. Estas categorias e determinações colocam em questão a origem ontológica do político e permitem melhor compreensão do processo de fetichização do poder político.

Dussel também recorda que Marx descobriu a “comunidade vivente” como categoria fundamental – a via de acesso à distinção entre “trabalho vivo” e “trabalho objetivado”. Mantendo pedagogicamente o processo de analogia, sempre levando em conta as diferenças dos âmbitos da economia e da politica, afirma:

“Assim como a crítica da economia política de Marx partia da “comunidade de viventes” dos que trabalham, e onde cada trabalhador era considerado como “trabalho vivo” […] da mesma maneira a crítica da filosofia política da libertação parte de uma categoria fundamental que organiza todo o sistema das categorias restantes. Esta categoria é a do poder político.”

Deste modo, Dussel nos indica que, no desenvolvimento da política da libertação, a categoria fundamental é o poder político. As demais categorias que compuserem o sistema serão dispostas em torno desta centralidade. Continuar lendo

Concreto, material, teoria, prática… Diferenças necessárias

grafite arte urbana QBRK (11)[8]Utilizamos uma série de termos para organizar nossos discursos, projetos, propostas e justificar nossas ações. O significado destes termos precisa sempre estar bem determinado: saber suas posições, oposições e diferenças é fundamental para delimitarmos nossas justificativas: nossos sistemas significativos de justificação. Muitas vezes lemos a oposição entre “teoria e prática”, mas sem sabermos as determinações de cada termo. Trabalhamos sem refletir como dada a diferença entre “material” e… Qual o oposto de material? Aliás, qual a diferença entre “material” e “concreto”? É comum ver estes termos como sinônimos e confusos. Por exemplo: soa estranho uma “teoria prática”? E uma teoria “concreta”? Uma abstração “material”? Bem, é preciso organizar…

Aqui entra boa parte do trabalho filosófico: produzir e organizar sistemas significativos de justificação. Me arriscando nesse exercício, seguem algumas diferenças e oposições que creio serem relevantes para a organização de nossos projetos, discursos e ações. Ao final do texto, cito as fontes de onde tiramos o seguinte quadro:

Prático x Poiético

Normalmente trabalha-se a diferença entre “teoria e prática”. Mas, após ter contato com Enrique Dussel, ver suas interpretações e indicações, encontrei uma proposta muito interessante: prático em oposição ao poiético. Para Dussel, lendo Aristóteles, prática é a produção de alguma coisa que tem como direção final outra pessoa. É o trabalho relacional. Poiético, por sua vez, é o trabalho pelo trabalho, a produção pela produção. Quando um sapateiro produz para entregar o sapato para alguém determinado, é um exercício prático. Quando um trabalhador de uma fábrica de sapatos produz sapato por manutenção da produção, é poiético. Tal diferença é importante porque rompe com uma limitação: a impossibilidade comum de se desenvolver uma “teoria prática”. A produção teórica que tem como direcionamento uma “pessoa determinada”, é, sim, prática. Já a produção teórica pela produção teórica, voltada ao próprio exercício produtivo, é “teoria poiética”.

Teoria x Empiria

Teoria é distinta de prática e poiética, diferente e oposta à empiria. Teoria é o trabalho “contemplativo”: a produção reflexa de organização de esquemas, sistemas, discursos, modelos… É a representação esquemática de determinada situação que possibilita uma experimentação sem consequências radicais e imediatas. Oposto à empiria: que é a experiência radical, determinada, concreta que altera imediatamente e sem possibilidade de regressão e digressão a situação experienciada. Não é exercício representativo, mas direto, imediato.

Material x Sistêmico

Material é o “núcleo duro” trabalhado: seja poieticamente, praticamente, em exercício teórico ou empírico, é aquilo que de modo bruto, em sentido especial “internamente indissociável”, que abre possibilidade para um ponto de partida seguro para o trabalho, a produção, o exercício. Então seja um tanto de barro na mão de um artesão, seja madeira na mão do marceneiro ou o “conceito geral” em Marx, é este núcleo o “material”. Marx consegue fundar seu materialismo histórico e seu materialismo dialético ao estipular/determinar o “homem trabalhador em geral”: qual o núcleo histórico que constitui qualquer trabalho efetivamente? A resposta, a constituição do “trabalho em geral”, possibilitou a entrada material na história do homem. O contrário, tradicionalmente, sempre foi tomado como “o ideal” ou “o espiritual”. Entretanto, depois de revoluções científicas, tecnológicas, etc, estes termos perderam certo significado. Neste sentido, tomando certo cuidado na interpretação de Bourdieu, o termo “sistema” explica melhor: já não é um núcleo duro a ser trabalhado, mas as relações institucionais, pessoais, estruturais… Enfim, as determinações relacionais nas quais certo objeto está imerso. Não seria mais o “trabalho em geral”, seguindo o exemplo de Marx, mas o trabalho no “sistema capitalista”; as regras do jogo e como se comportam suas “peças”. Estas regras não são “materiais” como núcleo bruto, mas são compreendidas e compreensíveis na relação: nas situações, ações e efeitos que surgem entre os “objetos”, os “materiais”, os “atores” do sistema e no sistema. Continuar lendo