Ontem, antes de começar uma aula magna com o Jessé Souza, conversava com um parceiro de mestrado sobre os nossos estudos, os vícios e complexidades da academia, coisas boas e fardos que temos que carregar. De todo modo, entre umas risadas e outras preocupações, ele bateu amistosamente no meu ombro e disse: “boa sorte…”. É verdade, vamos precisar. Por quê? Porque se já é difícil o trabalho filosófico para quem estuda a filosofia costumeira, que dirá quem se arrisca numa “coisa” como filosofia latino-americana? Quantas vezes já não tive que ouvir e quantas muitas ainda ouvirei o clássico “mas isso não é filosofia”. Será que nós seremos o reduto desse tipo de conservadorismo? Se opto por dizer que estudo filosofia da libertação, tenho que ouvir “mas pobre não é categoria filosófica!” – e, claro, “Deus” ou “alma” são…
Mas minha preocupação é menos com a aceitação da filosofia latino-americana ou de libertação pela academia e muito mais com nossa falta de autonomia; ou melhor, de independência. Fico indignado quando dizemos e sustentamos que não existe filósofo no Brasil ou que não é preciso existir uma filosofia brasileira – como se não houvesse diferenças de pensamento, produção e necessidade em cada esquina do mundo. É cansativa a inércia e a falta de tesão por produzir conteúdo, por trabalhar filosoficamente, por ser-no-mundo aqui e agora – com toda a malandragem possível dessa expressão -, distantes da floresta negra. A produção de conteúdo nas ciências sociais como de um Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Darcy Ribeiro, Florestan, Milton Santos, Faoro, Antônio Candido, Roberto Schwarz, Octávio Ianni e por aí vai até o Paulo Freire como intelectual brasileiro mais influente e lido no mundo, não pode ser isolada e deixada de lado como não-material a ser trabalhado filosoficamente. Não podemos simplesmente cogitar (com toda a malandragem possível, novamente) que o que era para ser feito em filosofia, já está pronto. Jamais desenvolveremos nossos sistemas significativos de justificação, jamais trabalharemos criticamente nossos problemas.
O livro de Jessé Souza A tolice da inteligência brasileira bem que poderia ter sido escrito por um filósofo de formação acadêmica. Mas seria impossível, pois na universidade brasileira filosofia só trabalha o que é “estritamente filosófico” – seja lá o que isso signifique. O trabalho intelectual sobre as questões brasileiras tem que correr para outras salas, minimamente mais abertas e arejadas, onde é possível questionar o sujeito, pensar categorias a partir da rua de uma cidade brasileira, dos acontecimentos e experiências duras, concretas e vivas da cotidianidade social, histórica, política e cultural dessa terra. Uma das discussões centrais no livro de Jessé é a crítica à separação ontológica e à hierarquia corpo-espírito presente nas estruturas intersubjetivas e promovidas pelas instituições político-sociais do e no Brasil, com suas singularidades e peculiaridades. Não é material para a filosofia? Jessé resgata Freyre e Sérgio Buarque fazendo críticas metodológicas e conceituais aos autores, abrindo janelas teóricas e possibilidades a serem avançadas e aprofundadas. Em filosofia seria um prato cheio. É possível? Em nossos locais convencionais de trabalho, parece que não.
Não dá para entender como fechamos nossos olhos para a construção histórica do pensamento no Brasil: nascemos da colonização, somos filhos da escravidão. O que temos de conteúdo, o modo como trabalhamos racionalmente nossas questões, está tudo carregado de colonização! Nós precisamos, sim, nos libertar! Isso não significa abandonar os autores, tradições e conteúdos vindos de fora; significa não baixar a cabeça em submissão, sem crítica, sem questionamento, sem grito, sem assumir que as condições materiais interferem diretamente nas possibilidades e no tipo de produção de conteúdo. Para a filósofa libertar a filosofia de seu machismo, tem que assumir que sofreu com o machismo filosófico. Para o filósofo negro libertar a filosofia do racismo, tem que assumir que há racismo filosófico. Para o filósofo brasileiro libertar a filosofia de sua colonização (seja colonizadora ou colonizada), tem que assumir que seu pensamento (e sua história) foi colonizado.
O grito por independência do pensamento não destrói ou aniquila a tradição – seria impossível -, mas firma um marco crítico que exige constante vigia e cuidado. É assumir que há um colonizador em nós que nos impede constantemente de ver as correntes, nos condiciona a achá-las boas, nos trava, oferece uma frágil segurança para evitar a certeza da crise. É quando a gente tem que escolher se vale mais ficar na casa grande ou receber um “boa sorte” porque a empreitada será difícil. Teríamos que assumir nossa história, reconhecer que somos filhos do estupro, que não há cultura sagrada, está cheia de sangue e que será com esse material que trabalharemos filosoficamente produzindo “mundo” no mundo.
Não é que Descartes ou Kant são grandes cretinos que planejaram destruir nossa vida. Sem ingenuidades. É que exatamente a estrutura que promoveu a colonização estava sustentada em ideias instituídas. Quem colonizou não colonizou sem pensar, crer e ter certeza racional e justificada de que deveria ser assim. Como Aníbal Quijano escreveu: “Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação colonial europeia, se foi constituindo o complexo cultural conhecido como a racionalidade/modernidade europeia, o qual foi estabelecido como um paradigma universal de conhecimento e de relação entre a humanidade e o resto do mundo. Esta contemporaneidade entre a colonialidade e a elaboração da racionalidade/modernidade não foi de nenhum modo acidental, como o revela o modo mesmo em que se elaborou o paradigma europeu do conhecimento racional”. Não é coincidência; faz parte de uma produção social, política, histórica e cultural. Só. Continuar lendo